UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR Faculdade de Cincias da
UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR Faculdade de Ciências da Saúde Curso de Medicina 7891 A Arte da Medicina UP 3 – Sofrimento, Morte, Cuidados Paliativos Tema 3. 4 O Homem, o Médico, a Morte Covilhã / UBI, Outubro/Novembro de 2012
OBJECTIVOS No final deste terma, o aluno deve ser capaz de: ü Relacionar as narrativas míticas sobre a consciência da Morte com o processo de construção da ‘humanidade do homem’ e dos seus limites; ü Esclarecer e justificar o significado antropológico da actual tendência neoiluminista para reprimir e ocultar socialmente a experiência da morte, bem como a ambiguidade inerente à incessante deslocação dos limites da vida; ü Evidenciar e avaliar várias formas de expressão social e de apropriação económica da experiência da morte, bem como a ambivalente conotação religiosa e secularizada das suas ritualizações, desde o culto primordial aos mortos, na pré -história, até às actuais homenagens fúnebres em contexto civil ou militar; ü Enumerar e explicitar precedentes especulativos e religiosos que determinaram historicamente quer teorizações filosóficas sobre a imortalidade do vivente humano, quer crenças monoteístas na ressurreição individual.
BIBLIOGRAFIA üA Epopeia de Gilgamesh üHans-Georg G , “A experiência da Morte”, in: O Mistério da [n. b. : primeiro texto escrito (conhecido) da Humanidade, cujas tradições orais remontam a 4500/5000 anos atrás, no Médio Oriente antigo. ] ADAMER Saúde, Lisboa, Edições 70, 1997, pp. 62 -69. üGeoffrey Gorer, “The Pornography of Death”, in: Encounter, vol. V, nº 4, (1955), pp. 49 -52. üCelia Mitie Tamura, A Pornografia da Morte…, Unicamp, Campinas, 2006 Outra bibliografia indicativa: Philippe Ariès, Essais sur l'histoire de la mort en Occident: du Moyen ge à nos jours, Paris, Seuil, 1975; ---------, Homme devant la mort, Paris, Seuil, 1977
O HOMEM ― De onde vim? ― Quem sou? ― Para onde vou? ― Porquê o Mal? ― Porquê a Dor? ― Porquê a Morte? (as interpretações e respostas das religiões, culturas, filosofias, ciências…)
«Quando os deuses criaram o Homem atribuíram-lhe a Morte; mas a Vida, essa ficou para eles. » * * Siduri, “A fazedora do vinho”, in Epopeia de Gilgamesh, IV
EPOPEIA DE GILGAMESH
A ARTE DA NARRATIVA ― O pharmakón / paliativo / remédio mais arcaico que, desde a Noite dos Tempos, a Humanidade descobriu para fazer frente à Morte foi a Narrativa (mýthos, épos, a história, …). ― ‘Contar’ e ‘cantar’ são as formas primordiais de dar sentido ao mundo e ao Homem, bem assim a tudo o que lhe acontece, muito especialmente o Sofrimento e a Morte. O que não é susceptível de Narrativa é existencialmente inumano e insuportável. ― Prof. Lobo Antunes: os Médicos devem reaprender urgentemente a “arte da Narrativa”… [Proj. Medicina e Narrativa]
A EPOPEIA DE GILGAMESH As Muralhas de Uruk
EPOPEIA DE GILGAMESH ― Gilgamesh na cidade de Uruk: um herói desmesurado, ‘hýbris’, arrogância; pedido aos deuses pelos homens de Uruk: que lhe mandem um rival… ― Criação e iniciação de Enkidu: de émulo e ‘alter ego’; da luta feroz inicial nasce a amizade indestrutível… ― A campanha de ambos contra o Guardião da Floresta dos Cedros: a morte de Humbaba, o Guardão do Sol. ― A investida amorosa de Isthar, recusa de Gilgamesh e morte do Touro do Céu…
MORTE DO TOURO DO CÉU
EPOPEIA DE GILGAMESH ― Doença e Morte de Enkidu, o ‘irmão’ de Gilgamesh, como retaliação dos deuses Anu e Enlil.
EPOPEIA DE GILGAMESH A Morte de Enkidu
EPOPEIA DE GILGAMESH A Busca da Imortalidade
EPOPEIA DE GILGAMESH Provas iniciáticas ― Luta e vence os Leões da Montanha ― Prova dos Homens-Escorpião, guardas da passagem
CONSELHOS DE SIDURI, ‘A FAZEDORA DE VINHO’
CONSELHOS DE SIDURI, ‘A FAZEDORA DE VINHO’
URSHANABI, O BARQUEIRO DE UTNAPISHTIN
ENCONTRO COM URSHANABI, O BARQUEIRO DE UTNAPISHTIN
ENCONTRO COM UTNAPISHTIN, O LONGÍNQUO
A NARRATIVA DO DILÚVIO O Dilúvio
EPOPEIA DE GILGAMESH As provas finais ― A prova do sono: ― A Planta da Eterna Juventude (flor de lótus? ):
EPOPEIA DE GILGAMESH A PROVA DECISIVA: AFLOR A ETERNA JUVENTUDE (LÓTUS? )
EPOPEIA DE GILGAMESH O FRACASSO FINAL : PERDA DA FLOR A ETERNA JUVENTUDE
EPOPEIA DE GILGAMESH A IMORTALIDADE INSCRITA NA PEDRA…
‘MEDITATIO MORTIS MEDITATIO VITAE? ’
E O MÉDICO? (Zelig, de Woody Allen)
- O homem é mortal. - O médico é um homem mortal. - O médico luta contra a dor e o sofrimento de uma pessoa, e em condições normais, tenta manter e cuidar o mais possível da vida. - Mas Morte é inevitável! - Será por isso o médico um homem e um médico falhados?
- O médico não é um mágico. - O médico não é um ‘deus’. - Mas certa medicina triunfalista vê a morte como falha, fracasso… - Encarniçamento // Obstinação [processos de ocultação, privatização da morte; “pornografização”…] - Medicina não visa evitar a morte, mas dar dignidade à vida (e cuidar sempre, mas especialmente nas situações-limite: ‘palliative care’)
O desaparecimento da morte na época contemporânea
O desaparecimento da imagem da morte na sociedade contemporânea ü Compreender as razões do seu desaparecimento cultural no espaço público [morte como fracasso intolerável da sociedade burguesa; ‘ferrão’ que incomoda…] ü Processo civilizacional gradual, radical e específico >> culmina na “desmitologização” da morte (e da vida). ü Processo insere-se numa tendência neo-Iluminista >> fundamento comum da realidade assente 1. no êxito/prestígio das ciências naturais modernas e 2. na eficácia e massificação dos meios de comunicação /informação (“dominar a morte é uma questão de tempo…”)
O progressivo movimento de desmitologização da morte incorpora-se no horizonte mais amplo de “desmitologização” da vida >> ordem lógica subjacente imposta pela ciência moderna / contemporânea Para a ciência moderna / contemporânea a origem da vida não é um facto “ad-mirável” [= “jogo” imprevisível de indeterminações e acasos gerador de espanto/perplexidade] >> mas um fenómeno “explicável” [= “construção” racional de nexos causa-efeito que se explicita num processo evolutivo “já pré-entendido” segundo uma ordem planificada, calculável e previsível] No horizonte do estádio avançado da tecnologia actual [= incentivado pelas exigências da revolução industrial e acelerado pelo ideal de aplicabilidade planificada da ciência] >> a experiência da morte já não se “visualiza” na simbólica “encenação urbana” do cortejo fúnebre, em que a comunidade se exprime A lógica burocrática e administrativa [= domínio planificado dos processos vitais humanos] do sistema de gestão organizativa das instituições de saúde pública [p. ex. hospital] ou privada [p. ex. clínicas] >> reduz o moribundo / falecido ao total anonimato
Morto ou ‘defunto’? (dēfūnctus; dēfungor: já não funciona, sem função. . )
O gradual eclipse da representação tangível e imediata ou simbólico-ritualizada da morte >> implica o eclipse da “encenação” pública do acontecimento a percepção social da morte natural como um acontecimento “ex-cêntrico” [= periférico/marginal; ao invés da morte violenta, espectacularizada] e “ob-sceno” [posto contra ou fora de cena] > remetida para espaços “mortuários” circunscritos [p. ex. capelas, câmaras, salas, . . . ; a (acontecimento da comunidade que perde um dos seus…) obscenidade transferiu-se do princípio da vida: a cópula, o nascimento, … para o seu fim]; [cf. por ricochete o paradoxo da morte em directo, de Jade Goody]; o desenraizamento do moribundo dos seus nichos de proximidade [família, vizinhos, amigos e conhecidos…]; a “repressão” subjectiva e colectiva da experiência-limite da morte > convertida em necessidade humana > abrindo janela de oportunidade de negócio de agências mortuárias / funerárias [= a morte <apesar da sua carga negativa> é estruturada
A DOR E A MORTE COMO EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS A Paixão de Cristo, de Mel Gibson
Todavia. . . > a tendência civilizacional de ocultamento social da morte expectada / pressentida [na vivência do moribundo] ou consumada / acontecida [na ocorrência do falecimento] manifesta fenomenologicamente um INDÍCIO PARADOXAL >> MORRER é a experiência humana que mais radicalmente revela a NATUREZA CRÍTICA dos LIMITES IMPOSTOS à tentativa de DOMÍNIO DA NATUREZA [desígnio fáustico, prometeico, daimónico com o qual colabora a ciência e a técnica de matriz neo. Iluminista] O empenho tecnocientífico em prolongar artificialmente a vida > pode revelar a sua face obscura num eventual “prolongamento da agonia” do paciente moribundo >> implicando 1. ora um ofuscamento da experiência cônscia do “eu estou a morrer”, 2. ora uma redução do sujeito em estado terminal a “mais um” componente do aparato mecânico do suporte funcional de vida [o paciente deixa de estar ligado à vida “através da máquina” > para passar a estar “ligado à máquina” através de uma vida cuja qualidade/dignidade se encontra comprometida]
A crença no poder químico dos anestésicos / antálgicos para poupar o paciente à dor vivenciada como “insuportável” > pode revelar a sua face sinistra numa eventual privação da capacidade do paciente para “sentir” o que se passa consigo e ao seu redor [= redução a um estado vegetativo em que a experiência intersubjectiva e relacional se encontra totalmente vedada] O propósito “generoso” de prolongamento de limiares instáveis de vida “apesar”, “contra” ou “para além” da natureza ou da panóplia terapêutica disponível > arrasta consigo uma perturbante contrapartida éticodeontológica >> em determinadas situações-limite envolvem-se e transferem-se para terceiros [=o médico, equipas…] a “experiência crítica” de “decidir” da morte do paciente dado como “irrecuperável” do ponto de vista
(c. 70%), medicalizada, em UCI’s (não em casa: a morte foi quase banida do domicílio e bem, em muitos casos, mas não todos), depois a um longo período de progressiva degradação das funções vitais e de várias falências sistémicas, no quadro de uma doença conhecida há meses ou anos. - A vida dita ‘normal’ (trabalho, ocupações…) já não se detém muito perante a morte. Não é assunto de muita conversa. Considera-se que as emoções provocadas pela morte devem ser reprimidas - Nos EUA, ao contrário da Europa, os cadáveres são mesmo preparados para dar a ilusão de que estão vivos, vivos de boa saúde, de boa qualidade, vitaminados, inoxidáveis… (cf. Six Feet inoxidáveis Under, 2001 -2005)
MAS. . . > importa prestar atenção reflexiva a um INDÍCIO SIGNIFICATIVO da MACRO-HISTÓRIA da civilização humana >> por mais que a morte se encontre actualmente capturada por dispositivos socioeconómicos que comercializam o ocultamento generalizado do corpo-cadáver ou por aparatos técnico-científicos que planificam e controlam o adiamento insistente da vida > não perder de vista que a MORTE [= enquanto limiar VIVENCIADO // não enquanto inoportuna limitação da vida] constitui uma EXPERIÊNCIA CENTRAL e ORIGINÁRIA inscrita dinâmica histórica da HOMINIZAÇÃO; A inumação [= sepultamento = enterro] dos cadáveres humanos constitui um acto de cultura primordial >> como traço distintivo de consciência morte = sinal diferenciador do homem como espécie À escala evolutiva > o acto pré-histórico de ritualizar o enterro dos mortos manifesta um coeficiente de hominização na tomada de consciência de si mesmo (religio /religião como culto dos antepassados)
Chapelle aux Saints (+-100 mil anos a. C. ) O homo neanderthalensis já inumava os seus mortos. (crença na ‘outra’ da vida? )
Na significação do último adeus a uma “partida” a sepultura humana desde os seus primórdios indicia: 1. o carácter inexplicável [insuscpetível de racionalização] da morte > 2. 3. a necessidade de recorrer a mediações sociais consciência de que a morte não é uma ameaça à qual se possa responder mas talvez uma oportunidade para transformar a vida dos vivos numa questão; um auto-apropriado consentimento colectivo do desaparecimento de um semelhante > consciência relacional de “já-não-pertença” definitiva a uma comunidade; [p. ex. carpideiras = função de absorver num pranto individual todo o peso esmagador de uma dor colectiva] > com a finalidade catártica de restaurar desequilíbrios sociais provocados definitiva de um elemento relacional. pela perda
A ritualização sagrada da morte exprime desde sempre a indómita recusa humana para encarar a morte como fim de tudo > a natureza coopera com essa recusa utilizando a reacção negativa à ameaça de desaparecimento como reforço da vontade humana de existir [= no mito de Prometeu, recriado pelo tragediógrafo Ésquilo] a representação dramatúrgica do roubo do fogo divino exibe a possibilidade oferecida a cada ser humano de 1. não conhecer antecipadamente a hora da morte (mors certa, hora incerta); 2. através desse latente esquecimento do termo da vida, manter o futuro aberto à sua auto-realização através dos grandes feitos e conquistas da cultura.
Túmulo da ‘Princesa Altaï’ Pazyryk tatuada (Rússia/Mongólia) (séc. V a. C. , conservada no gelo)
• A radicalidade ontológica • > explica a razão pela qual a sociedade actual [sob a capa de da tendência “hominídea” para, desde a pré-história, cultuar os mortos sob a tutela religiosa de uma sacralização [= essencial] formas institucionalizadas de escondimento, disfarce ou adiamento sine die da morte] promove a exaltação da vida através de uma discreta secularização das formas imemoriais de sacralizar o culto da morte • >> manifesta-se em factos sociais observáveis de “respeito e homenagem à morte” como sejam:
a discreta e contínua relação psicológica entre o sentimento de repulsa perante a morte e, simultaneamente, a convicção íntima de que o inexorável termo da existência permanece sempre oculto; o pressentimento da proximidade da morte desencadeia em qualquer ser humano uma reacção ambivalente: 1. por um lado a força com que o moribundo se agarra aos últimos filamentos de vida, adiando a explicitação das últimas vontades // traduz a mesma vontade de viver 2. daquele que, por outro lado, dita as últimas vontades, as disposições legais, como derradeira afirmação da sua vitalidade;
ü a atitude social de alguns sectores não confessionais [não-crentes, agnósticos ou ateus] em assimilar secularmente [sob a forma de liturgia pública] a índole religiosa de ritos ligados 1. a “celebrações de vida” [p. ex. baptismo, casamento] e 2. a “celebrações da morte” [p. exéquias religiosas, honras e elogios fúnebres civis e militares, expressão privada de condolências por falecimento, etc. ]; ü a transfiguração misteriosa que se opera na memória do vivo quando recorda e evoca apenas os aspectos positivos e agradáveis de um ente morto;
Mesmo sem influxo de uma crença religiosa ou de uma convicção metafísica na vida “para além da morte” > religião e secularismo estão de acordo quanto ao fundamento ANTROPOLÓGICO do universal interesse do ser humano em manter culturalmente aberta a expectativa existencial de vida depois da morte [mesmo que não se tenha consciência imediata disso sob a forma de discurso; sentido do sagrado e da transcendência nas culturas] a definição essencial do homem como ser que procura superar a morte [mesmo que isso não tenha tradução imediata na acção] a possibilidade “salvífica” (de ordem religiosa) ou “saudável” (de ordem secularizada) de converter a negatividade da morte em afirmação da vida;
PRECEDENTES HISTÓRICO-CRÍTICOS Filosofia greco-romana > pensar o/sobre o divino >> deuses representam o supremo sentido da vida // o homem pode partilhar da imortalidade divina > divinização da alma (theiôsis) Heraclito > «mortais imortais, imortais – vivos nesse morrer, nesse viver mortos» [cf. frg. 62] Platão > serenidade de Sócrates perante a condenação à morte > texto vivo dos argumentos sobre a imortalidade da alma <congénita da essência imutável das ideias = formas puras e eternas> [cf. diálogo Fédon] Estoicismo > imperturbabilidade absoluta perante o medo absurdo da morte > suicídio como afirmação paroxística da decisão de dispor livremente da vida [vide Séneca, Cartas a Lucílio; Epicteto, Manual, …] Epicuro > anular a consciência nefasta da morte através da arte de viver com prazer [cf. Siduri, “A fazedora de Vinho”, 2500 anos antes…. ];
Na Antiguidade clássica a imagem da Morte (Thánatos) é representada como “irmã do Sono” (Hýpnos) // e não como sinistro “esqueleto” que ceifa a vida no imaginário medieval e moderno [cf. Lessing]
“Resurrexit sicut dixit” A saída religiosa de algumas religiões… Religião judeo-cristã-muçulmana > agir do/no divino >> Deus é o supremo criador e providente doador de vida // o homem é chamado conviver com o divino sob o signo monoteísta da eternidade > ressurreição da totalidade pessoal corpo-alma
O HOMEM ― De onde vim? ― Quem sou? ― Para onde vou? ― Porquê o Mal? ― Porquê a Dor? ― Porquê a Morte?
- Slides: 51