Sade como conceito filosfico Roberto Passos Nogueira A
Saúde como conceito filosófico Roberto Passos Nogueira
A SAÚDE E OS FILÓSOFOS o Na Grécia Antiga e na Idade Média, muitos filósofos ocuparam-se acerca do significado da saúde. Aristóteles e Tomás de Aquino são bons exemplos. o Entre os filósofos modernos, Heidegger é praticamente uma exceção devido à seriedade e profundidade com que ele tratou o assunto nos Seminários de Zollikon, realizados entre 1959 e 1969. o Nesses seminários, Heidegger fez ver que, toda compreensão moderna acerca das doenças tem por detrás a distinção cartesiana entre sujeito e objeto, que o filósofo alemão buscou ultrapassar desde quando escreveu Ser e Tempo, em 1927. o O problema, para Heidegger, é que a doença do ser humano não pode ser entendida nem como um objeto anormal nem como um sujeito anormal. o Esse é o centro de suas palestras e discussões nesses seminários.
A COMPREENSÃO METAFÍSICA DO SER HUMANO Os conceitos de saúde e de doença estão relacionados a três respostas que foram dadas pelos filósofos a duas questões metafísicas: 1) o que é tudo que há no mundo? 2) o que é o ser humano? As três respostas são as seguintes: o Na Grécia, tudo o que há no mundo é natureza (physis) e o ser humano é o animal racional como parte da natureza. A saúde é considerada como sendo o equilíbrio dos componentes essenciais da natureza presentes no corpo humano. o Na Idade Média, tudo o que há no mundo é a Criação de Deus. O ser humano é a criatura dotada de livre arbítrio. A saúde tem a ver com a salvação pessoal. o Na modernidade, tudo o que há no mundo são objetos e sujeitos. O ser humano é sujeito, aquele que busca representar mentalmente os objetos que o cercam de forma certa e segura, como disse Descartes. A doença tem a ver com o distúrbio dos órgãos, das funções corporais e do próprio comportamento humano, considerados como objetos anormais (anomalias).
A DOENÇA NA GRÉCIA ANTIGA o Na medicina grega dos tempos de Hipócrates, a doença era entendida como o modo de ser da natureza que surge, mostra-se presente e se regenera por si mesmo. o Sob a influência dos filósofos pré-socráticos, a saúde era dada pela boa composição dos humores que correspondiam aos quatro elementos naturais (fogo, ar, terra, água). o As doenças resultavam de uma composição desequilibrada e nociva entre os humores, cujas características correspondiam aos quatro elementos naturais. o A predominância de um dos quatros humores em sua constituição determinava os quatro tipos humanos (colérico, sanguíneo, colérico e fleumático), com diferentes propensões a doenças o Tal concepção influenciou profundamente a prática da medicina até ao fim do século XVIII.
A concepção metafísica da saúde e da doença por Galeno – tabela de correspondência entre os quatro elementos da natureza e os quatro humores Fogo Ar Terra Água Quente e seco Quente e úmido Frio e seco Frio e úmido Humor Bílis amarela Sangue Bílis negra Linfa (fleuma) Sede corporal Tipo humano Fígado Coração Baço Cérebro Colérico Sanguíneo Melancólico Fleumático Substância Qualidade
Modernidade: a doença como objeto anormal o No século XVIII, a doença passa a ser considerada como uma entidade suscetível de observação e mensuração, ou seja, um objeto anormal que produz certos sinais constatáveis no exame clínico e anatomopatológico. o Sob o predomínio dessa concepção objetal, a saúde física é entendida como a normalidade dos objetos suscetíveis de exame (órgão, tecido, células, etc. ). o No século XX, um método de classificação semelhante começa a prevalecer para a doença mental, que é definida de acordo com um padrão “objetivo” de comportamento do sujeito com base em sintomas que persistem por um dado período temporal, geralmente medido em meses. A necessidade cartesiana de mensuração conquista, finalmente, o espaço da saúde mental, derrotando a psicanálise.
SÉCULO XX: A DETERMINAÇÃO OBJETAL DA DOENÇA MENTAL Descrição da ansiedade generalizada (F 41. 1, CID-10) Deve ter havido um período de pelo menos 6 meses de proeminente tensão, preocupação e sentimentos de apreensão acerca de eventos e problemas cotidianos. Devem estar presentes pelo menos quatro dos sintomas listados a seguir [segue uma lista de vinte e dois sintomas distribuídos em tipos físicos e mentais, por exemplo, sintomas envolvendo tórax e abdômen: dificuldade de respirar; sentimento de choque; desconforto ou dor torácica; náusea ou mal-estar abdominal].
Conceitos metafísicos que caracterizam a concepção objetal doença 1) 2) 3) 4) 5) 6) 7) A doença se faz presente como um ente qualquer. Portanto, a doença é um ente ou entidade. Mais especificamente, é um objeto anormal cujas alterações são observáveis. O objeto anormal é passível de mensuração. No caso de doenças mentais, devem ter um padrão temporal mínimo (número de meses de persistência dos sintomas). A saúde é a negação lógica da doença: uma pessoa não pode ser doente e sadia ao mesmo tempo (contradição lógica). Quanto mais tempo vive uma dada população, mais saudável é.
Alcance histórico da concepção objetal da doença pela medicina o A concepção objetal funda todo um período histórico em que o homem se comporta em relação à doença como se fosse um mero portador de objetos; ou seja, é alguém que carrega sua doença. o O único sujeito considerado é o médico, com sua ciência e técnica, que examina a doença “de modo certo e seguro”, de acordo com o pressuposto de Descartes. o A concepção objetal elimina qualquer sentido existencial na experiência humana da doença. o O princípio geral da medicina moderna é o mesmo da física: só o mensurável é real. Heidegger pergunta: “pode -se medir a tristeza, por exemplo”? o Isso expressa a vontade de poder peculiar à técnica: medir para poder controlar, controlar para poder intervir.
O não-humano da doença o O que há de essencialmente equivocado com a concepção objetal da doença? É que ela dá a entender que o homem é um ente natural – de fato, a medicina o toma assim. o Perde-se de vista a essência do homem como diz Heidegger: “(. . . ) só podemos ver o ser humano como um ente da natureza, ou seja, temos a pretensão de determinar a essência particular do homem com a ajuda de um método que não foi concebido para tal”. o Heidegger quer dizer que esse método foi criado para o estudo dos “objetos” da física (Galileu e Newton). o Foram Descartes e Kant que conceberam o fundamento filosófico desse método.
O colesterol nosso de cada dia: a saúde comandada pela técnica Uma pessoa encontra outra na rua: - “Como vai seu colesterol”? “Esteve péssimo, mas agora está bem melhor, fiz uma dieta puxadíssima”. O que acontece quando a saúde é confundida com a medida de uma dada substância corporal? Segundo Heidegger, a técnica não é um instrumento neutro. Ela comanda o destino da humanidade no mundo atual e, portanto, comanda nossa saúde.
Crítica da inumanidade da medicina moderna (citações dos Seminários de Zollikon) o A grande decisão é: será que podemos, a partir dessa forma de representação científico-natural, definida sem qualquer consideração pelo que é próprio do ser humano, observar o homem no horizonte dessa ciência e entender o modo de ser do homem? o Aonde se pode chegar assim com uma pessoa enferma? Fracassamos! o Não será que devemos nos indagar como o ser humano se mostra e que tipo de abordagem e de consideração requer o ser humano a partir de sua peculiaridade?
Breve resumo dos conceitos humanos da saúde em Heidegger o O ser humano é essencialmente necessitado de ajuda na convivência cotidiana com os outros, por estar sempre em perigo de se perder, de não conseguir lidar consigo mesmo. o Esse perigo decorre da sua própria essência, a liberdade. o Liberdade é a capacidade de ser manter livre e aberto em relação à presença de pessoas e de coisas que nos demandam, de perto ou de longe, agora ou amanhã. o O estresse, a angústia e a depressão inerentes ao exercício dessa liberdade de relação com o mundo, ou seja, são estados de ânimo que fazem parte de nosso cotidiano “normal”. o Mas o estresse, a angústia e a depressão podem nos conduzir à doença quando perduram e dominam o ser humano. o Toda enfermidade caracteriza-se como uma perda e uma perturbação das possibilidades de relacionamento livre com tudo o que nos demanda no mundo, sem distinção entre doenças mentais e doenças físicas.
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