Saber negociar a mudana Philippe Perrenoud Faculdade de
Saber negociar a mudança Philippe Perrenoud Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Universidade de Genebra 2013 1
Endereços Internet http: //www. unige. ch/fapse/SSE/teachers/perrenoud/ Laboratoire Innovation-Formation-Education LIFE http: //www. unige. ch/fapse/life 2
O gato do guru Todas as noites quando o guru se sentava para fazer a sua prece, o gato do templo hindu se atravessava no caminho das pessoas, distraindo-as durante a prece. Então, o guru ordenou que o gato ficasse preso durante a prece da noite. Muito tempo após a morte do guru, continuaram prendendo o gato durante a prece da noite. Depois, o gato acabou morrendo e levaram outro gato para o templo, para que o mesmo pudesse ser devidamente prendido durante a prece da noite. Séculos mais tarde, os discípulos do guru escreveram sábios tratados sobre a função essencial de um gato para o bom desenrolar de qualquer prece. Estória contada por Luce Brossard, no seu editorial de Vie pédagogique (Québec), n° 112, setembro-outubro de 1999. 3
Mudança das práticas pedagógicas · Algumas reformas ditas « estruturais » têm, aparentemente, pouca incidência sobre as práticas, mas o modo como elas são recebidas muda tudo: ciclos plurianuais, interdisciplinariedade. · Isto é ainda mais evidente quando se trata de reformas curriculares: as quais só terão êxito se as práticas mudarem. · As práticas constituem o foco de outras inovações: avaliação formativa e pedagogia diferenciada, construtivismo e métodos ativos, por exemplo. · A mudança « planejada » do sistema educacional exige, quase sempre, uma transformação das práticas. · Portanto, numa etapa anterior, deverá haver uma transformação daquilo que fundamenta as práticas: atitudes, representações, conhecimentos e competências. · Mas ninguém muda nada sozinho! Pois todos estão inseridos numa organização do trabalho escolar, que limita aquilo que uma pessoa pode fazer, e até mesmo imaginar sozinha! 5
Mudar, é aprender · · · As reformas escolares, como os projetos dos estabelecimentos de ensino, estão condenadas ao fracasso se a mudança não for aceita pelos professores. Ninguém adere facilmente a uma mudança da qual não seja o autor e se não estiver associado à sua concepção e à sua implementação. A negociação da mudança com os atores envolvidos, desde a sua concepção até à sua coordenação, é, contudo, uma condição necessária. A mudança de práticas supõe novos aprendizados profissionais, os quais só serão possíveis, em larga escala, se estiverem situados na zona de desenvolvimento proximal da maioria das pessoas envolvidas, sem exigir uma « mutação » . Essas aprendizagens, mesmo mensuradas, só serão possíveis se o desenvolvimento profissional estiver inserido na identidade dos profissionais. 6
I. Negociar a mudança consigo próprio… 7
Negociar a mudança consigo próprio? • Pode parecer estranho falar de uma negociação consigo próprio. Provavelmente, no sentido estrito do termo, seria mais conveniente limitar o conceito de negociação a uma transação entre diferentes atores. • Contudo, a título metafórico, podemos imaginar um diálogo interior, dentro de cada professor, entre a parte do seu ser que preferiria que nada mudasse e aquela outra parte que gosta da mudança, tanto da mudança em si como pelo fato dela permitir que o trabalho da pessoa seja mais eficaz. • É uma maneira de reconhecer a ambivalência fundamental dos atores perante a mudança. Essa ambivalência nada tem de surpreendente pois, apesar da mudança permitir que haja progresso, ela representa também um custo. • Compreender as nossas próprias ambivalências permite uma melhor compreensão daquilo que divide as pessoas em relação à mudança. 8
Identidade reflexiva e relação com a mudança · · · · O desejo de mudar e a passagem ao ato supõem a adesão profunda a uma representação da prática como construção e resolução de problemas. A evolução da prática deve parecer « natural » enquanto os problemas não tiverem sido resolvidos (fracasso escolar) ou enquanto surgirem novos problemas (falta de civilidade). Essa relação com a mudança remete à figura do profissional reflexivo, na perspectiva de Dewey retomada por Schön. A prática reflexiva é uma questão de postura e de identidade, muito antes de ser uma questão de competência ou de método. Essas noções - prática, postura e identidade reflexivas - suscitam vários mal-entendidos que devem ser dirimidos. A reflexividade representa um risco para as organizações, onde nem sempre ela é bem-vinda. Ela representa um risco para as próprias pessoas. 9
Postura reflexiva e profissionalismo do professor · · · · « Profissional reflexivo » , um termo que magoa ou uma evidência? Trabalhar é pensar! A reflexão, para preparar e para conduzir a ação, está no cerne de qualquer prática. A postura reflexiva começa quando o pensamento coloca a ação e a maneira de conduzi-la como objeto da reflexão. A reflexividade é, muitas vezes, uma resposta passageira para um fracasso, para uma impotência, para dúvidas, para um mal -estar do profissional. De modo ideal, ela faz parte de um questionamento da prática, enquanto houver um desvio em relação aos objetivos. Uma prática, mas, primeiramente, uma postura, uma relação consigo próprio, com o trabalho, com a mudança, com o saber, com o pensamento. Pensar a própria ação, pensar o próprio pensamento, pensar os próprios hábitos, pensar o sistema de ação coletiva do qual se participa. 10
Oportunidades e riscos de uma prática reflexiva para a organização: rotinas defensivas e mudança • • • O duplo discurso das organizações: convite à reflexão e rotinas defensivas (Chrys Argyris) A reflexividade desvenda a arbitrariedade e a ineficácia de uma parte das práticas, dos procedimentos, das estruturas, da organização do trabalho. A reflexividade questiona as rotinas, propõe a mudança, ameaça o conforto, os direitos adquiridos e os territórios; suscitando, portanto, resistências e conflitos. A reflexividade contesta a divisão entre concepção e execução, afeta as relações de poder e o status. A reflexividade é um exercício de lucidez que ameaça mitos, tabus e dogmas da organização. 11
Oportunidades e riscos de uma prática reflexiva para a pessoa: o sentido ou a tranquilidade? • • • A reflexividade invade a existência, ela nos persegue e permanece conosco mesmo depois do horário de trabalho. A reflexividade é uma atividade mental, um investimento subjetivo; ela cansa. A reflexividade produz uma exigência de coerência e de domínio; ela nos coloca numa busca sem fim. A reflexividade desestabiliza, coloca o profissional diante dos seus limites, ameaça a sua auto-estima e o obriga a evoluir para reencontrá-la. A reflexividade pode criar tensões com os outros, isolar, gerar um equilíbrio instável dentro do grupo. A reflexividade pode prejudicar a carreira, suscitar a agressividade e, às vezes, gerar represalhas por parte dos superiores hierárquicos. 12
Uma questão de conhecimentos e de competências • • • Refletir é bom, mas não basta o senso comum. São necessários conceitos, um esquema de leitura daquilo que está ocorrendo. Portanto, são necessários conhecimentos provenientes do meio profissional ou da pesquisa. O meio profissional veicula um pensamento conservador, mas também um pensamento crítico, inovador, criativo, por exemplo nos movimentos pedagógicos. As ciências humanas e sociais são recursos indispensáveis; é necessária uma cultura de base. São necessários método e um « saber-analisar » (Altet), para ir além das aparências e das evidências. São necessários senso observação e competências, para registrar, memorizar, analisar situações, momentos de ação, raciocínios profissionais. 13
Uma questão de identidade e de relação com a atividade profissional • • A prática reflexiva será rapidamente esgotada se não proporcionar prazer. Portanto, é necessário aceitar « ir fundo » , até mesmo « quebrar a cabeça » . É necessário vivenciar essa experiência sem se sentir permanentemente culpado, infeliz, ansioso, desestabilizado ou miserável. Mais vale aceitar dialogar, compartilhar, trocar ideias. A reflexividade só poderá se instaurar se corresponder a uma identidade positiva, a uma fonte de autoestima. Ela só perdurará se proporcionar mais satisfação do que sofrimento, se enriquecer a vida, ao invés de prejudicá-la. É uma postura profissional, mas é inseparável de uma relação com o mundo, de uma postura quase filosófica. 14
Saberes de inovação e estratégias de atores • A identidade reflexiva se desintegrará se a realidade resistir a qualquer mudança. • Ninguém poderá, sozinho, mudar as relações de força fortemente estabelecidas, modificar rotinas, quebrar tabus. • A não ser marginalizando-se, sendo estigmatizado como idealista, agitador ou alguém quer impedir o trabalho. • A ação coletiva proporciona um maior domínio do sistema, mas não faz milagre. • Essa ação supõe a competência para construir um coletivo (equipe, estabelecimento de ensino, rede), para fazê-lo funcionar e perdurar. • A dimensão reflexiva perderá a sua força se não puder fundamentar-se em saberes de inovação, concebidos como saberes de ação, saberes estratégicos mobilizáveis no sistema, para fazê-lo evoluir, transformar as práticas e a organização do trabalho. • Esses saberes exigem um mínimo de formação em ciências sociais e de conhecimentos em relação aos processos de inovação. 15
II. Negociar a mudança com os outros… 16
Inovação, lições de 1 a 3 1. A inovação, antes de ser - eventualmente - uma mudança efetiva, é uma mudança sonhada, imaginada, prevista, preconfigurada. Portanto, é algo da ordem das representações. 2. Essas representações não se limitam a indicar o que poderá ou deverá mudar, mas se estendem às razões dessa mudança, aos obstáculos previsíveis, às vantagens e aos inconvenientes presumidos. 3. Propor uma inovação não é nunca, em si, algo eminentemente racional e orientado no sentido de um progresso indiscutível. A noção de progresso não constitui uma unanimidade, pois é raro que as razões para inovar ou fazer com que os outros inovem sejam totalmente desinteressadas, consistindo numa simples expressão do bem público, o qual, aliás, é objeto de visões muito diferentes. 17
Inovação, lições de 4 a 6 4. Também não podemos dizer que toda resistência à inovação é, a priori, irracional ou reacionária. Tal como os defensores da inovação, os resistentes têm as suas razões, geralmente fruto de uma reflexão, mesmo que são sejam sempre explicitadas. 5. Raramente a inovação consiste num objetivo em si mesma, ela está relacionada às visões de mundo, às ideologias, às estratégias mais amplas. Às vezes, ela é apenas um meio para que nada de essencial mude. 6. A inovação na educação raramente concerne um único ator, mesmo que ele seja o seu iniciador. Quando um professor inova na sala de aula, isto tem implicações para os alunos e para os seus pais e, às vezes – pelo menos indiretamente para os seus colegas ou para os seus superiores hierárquicos. Um professor que deixa de passar deveres aos alunos ou deixa de punir provoca, por exemplo, uma comparação com os seus colegas. 18
Inovação, lições 7 e 8 7. Os atores envolvidos raramente têm a mesma relação com uma determinada inovação. Tudo depende dos seus projetos, das suas expectativas, das suas competências, dos seus medos, das alternativas de que dispõem, das suas alianças, dos outros elementos em jogo, do seu respectivo cálculo « custo/benefício » . 8. Portanto, a inovação é, de modo geral, objeto de uma transação, de uma barganha que dá origem a um meio termo entre vários interesses, vários sistemas de valores, vários projetos, várias lógicas de ação. 19
Inovação, lições 9 e 10 9. As transações relativas a diversas inovações possíveis, almejáveis e temidas estão no cerne do funcionamento das organizações e do mundo do trabalho, colocando permanentemente em jogo as relações de poder e o sentido das atividades. 9. O sentido de uma inovação é sempre, em última instância, construído por cada um dos atores, apesar deles sofrerem influências e não cogitarem sozinhos a inovação. 20
• • • Negociar, um bom cálculo Negociar é, sob alguns pontos de vista, uma virtude democrática, mas também um bom cálculo. Algumas decisões podem ser impostas sem negociação, pois colocam os atores diante de um fato consumado, sem lhes permitir qualquer escolha. Na educação, pelo menos sempre que visamos uma mudança das práticas pedagógicas, a adesão do ator é indispensável. Ora, não podemos obter tal adesão se não levarmos em conta os medos e as esperanças dos atores envolvidos, se não lhes dermos um certo poder sobre a natureza e o ritmo da mudança. Não negociar é um cálculo de visão curta, pois acredita-se ganhar tempo, mas na realidade se perde tempo! 21
Obstáculos para uma cultura da negociação • Os sindicatos de professores, geralmente, preferem esperar a reforma e, depois, repudiá-la, ao invés de se associarem à sua gênese e compartilharem as respectivas responsabilidades. • Os ministros ainda acreditam que uma reforma é uma « guerra-relâmpago » e qualquer negociação, pelo fato de tornar mais demoradas as operações, é uma ameaça de fracasso ou de adiamento da mudança para uma data posterior às próximas eleições… • As autoridades escolares e os diretores de estabelecimentos de ensino estão entre a cruz e a espada, pois devem explicar para a sua base que nem tudo é negociável e, ao mesmo tempo, tentam convencer os seus próprios superiores hierárquicos de que as coisas estão caminhando rápido demais e que não estão sendo compreendidas. 22
1. 2. 3. 4. 5. Negociar realmente: indicadores de 1 a 5 A negociação respeita um certo número de regras, as quais deverão ser objeto de acordo entre as partes envolvidas, e deverão ser colocadas por escrito. O problema deverá ser colocado num momento em que os prazos não impeçam a realização desse acordo. O problema deverá também ser tratado abertamente, o que não exclui hipóteses de solução. Todos deverão ter o direito de opinar. Ninguém poderá entrar na negociação com o único propósito de convencer os outros quanto ao seu ponto de vista, sem cogitar que todos deverão chegar a um meio termo. Se um dos parceiros estiver sujeito a determinadas missões ou regras que limitem a sua margem de manobra na negociação, isto deverá ser previamente levado ao conhecimento de todos. 23
6. 7. 8. 9. Negociar realmente: indicadores de 6 a 9 O grupo deverá dispor de todas as informações necessárias para abordar corretamente o problema, perceber os elementos em jogo e imaginar diversas soluções. Poderão ser livremente solicitados diferentes recursos externos ou especialistas. Para isto, o grupo deverá dispor de um orçamento compatível. O grupo deverá ter tempo e recursos necessários para realizar o acordo, estabelecendo um cronograma realista que deverá ser cumprido. Ninguém poderá se retirar de maneira unilateral, durante o período de negociação, exceto por razões graves e imprevisíveis (que não suscitem controvérsias). 24
10. 11. 12. 13. Negociar realmente: indicadores de 10 a 13 Ninguém poderá, exceto por motivos graves, levar a negociação a uma instância superior. Todos disporão do mesmo tempo e dos mesmos direitos para consultar as suas bases em relação, no mínimo, às principais orientações, caso não seja possível discutir detalhadamente o conteúdo dos textos. Deverá ser lavrada uma ata, que será aprovada pelo grupo, para todas as reuniões, para que sejam devidamente documentados os conteúdos tratados em todas as etapas e os acordos parciais. O resultado final da negociação, que será de domínio público, deverá ser apresentado por escrito, mencionando as posições minoritárias. 25
Ser um pouco sociólogo • • • Negociar é exercer coletivamente um certo poder. Ora, os professores não vêem o poder com bons olhos. Certamente, eles exercem um poder sobre os alunos, mas não têm muita clareza disto. Os professores preferem ser autônomos, ao invés de exercer poder sobre outros adultos. Suspeita-se, inclusive, que aqueles que assumem responsabilidades o fazem somente porque « gostam do poder » . Ora, negociar é compreender os mecanismos do poder, sem satanizá-los, é colocar claramente a sua posição e aceitar que toda ação coletiva gera um enfrentamento com o poder. Para que se mantenha esse distanciamento, é necessário ir além do senso comum, adquirindo portanto uma cultura psicossociológica. 26
Perrenoud, Ph. (2010). Aprender a Negociar a Mudança em Educação. Novas estratégias de innovação. Curitiba : Editora Melo. 27
Endereços Internet http: //www. unige. ch/fapse/SSE/teachers/perrenoud/ Laboratoire Innovation-Formation-Education LIFE http: //www. unige. ch/fapse/life 28
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