Loucura de Amor Escrito por Paola Rhoden em

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Loucura de Amor Escrito por Paola Rhoden em 1992

Loucura de Amor Escrito por Paola Rhoden em 1992

Era noite e quase na hora dele chegar. Diante do espelho Clarissa olhava a

Era noite e quase na hora dele chegar. Diante do espelho Clarissa olhava a imagem refletida e gostou do que viu. Os cabelos castanhos longos e sedosos caiam nas costas em ondas abundantes, realçando o belo rosto oval, onde brilhantes olhos verdes tinham uma expressão enigmática. O decote tomara que caia do vestido verde musgo que ia quase até o joelho, mostrava o início de seios fortes e firmes. Os saltos muito altos da sandália valorizavam as longas pernas bem torneadas. Era uma linda mulher! Estava concluindo a produção que fazia cada vez que saía para sua missão. Matar! Ela preparava suas vítimas com dois meses de antecedência, para que tudo desse certo e não houvesse surpresas desagradáveis na hora H. O de hoje era o quarto da série. Era um homem casado, proeminente no ramo de negócios da capital do Estado. Safado como tantos outros. Traía a mulher e dava maus exemplos constantes ao filho de dezoito anos, que já seguia seus passos em várias falcatruas. Justiça lhe seja feita, dava a Clarissa tudo o que pedia e mais um pouco. O belo e caro vestido que estava usando fora presente dele no dia anterior quando marcaram esse encontro. Mal sabia ele que seria sua última façanha.

Olhou mais uma vez para o espelho e saiu decidida como sempre. Um elegante

Olhou mais uma vez para o espelho e saiu decidida como sempre. Um elegante carro último tipo a esperava na entrada do prédio, Clarissa entrou e deu um beijo de boa noite no bem vestido e cheiroso homem ao volante. O carro arrancou suavemente em direção ao mar, mais precisamente próximo às rochas atrás do sítio onde ficavam os restaurantes e motéis da moda, para onde ia com seus escolhidos na noite programada para matá-los. Eles sempre concordavam com a escolha, porque durante o tempo de preparação ela deixava que eles escolhessem os locais para namorar. Só no último encontro é que ela fazia aquele beicinho e dizia: - Posso escolher para onde iremos amanhã? Só uma vez? E os caras deixavam por conta dela então, o local onde sem saber iriam para a morte. Inteligente e bela, Clarissa fazia dos homens o queria. Mas, nem sempre ela fora assim.

Aos quinze anos Clarissa conheceu o homem que foi o amor de sua vida.

Aos quinze anos Clarissa conheceu o homem que foi o amor de sua vida. Primeiro namorado, primeira transa, primeiro em tudo. Apaixonou-se por ele na sua festa de aniversário. Ele foi seu par na valsa há meia noite, e depois disso toda vez que Maurício vinha da capital para um passeio, os dois estavam juntos. Perdeu a virgindade aos dezesseis anos após terem saído de uma festa do colégio onde haviam bebido um pouco, e chegou a casa logo de manhãzinha, sendo surpreendida pelo pai que a esperou quase a noite toda acordado. - São horas de uma menina de sua idade chegar? - Ora papai! Estava com Maurício, fomos comer algo depois da festa e não vimos o tempo passar. Seja razoável. Maurício era bom rapaz e o pai deixou passar, embora lá com seus botões estivesse com a pulga atrás da orelha. Mas, deixa pra lá! A juventude de hoje em dia está muito diferente dos dias de minha juventude, pensou o pai para se acalmar.

E assim foi durante três anos. Quando Clarissa completou dezoito anos Maurício a pediu

E assim foi durante três anos. Quando Clarissa completou dezoito anos Maurício a pediu em casamento. Ele já estava formado, podia agora sustentar uma família, e ela poderia continuar os estudos na capital sem problemas. Ele havia conseguido um cargo de professor na faculdade para onde Clarissa iria, e isso conciliaria tudo. Mesmo com alguma resistência de ambas as famílias, o casal conseguiu realizar o sonho do casamento que planejavam há tanto tempo. Não muito longe da faculdade onde Maurício lecionava e Clarissa ia estudar, alugaram um pequeno cômodo de uma única peça, onde se conjugava quarto, cozinha e sala. O banheiro era minúsculo, mas com um pouco de organização tudo se arranjava. Era o que podiam pagar no momento. Clarissa apaixonada demais para achar defeitos, e Maurício contente porque assim poderia pagar as despesas enquanto Clarissa não pudesse ajudar. Filhos nem pensar por enquanto. Esse fato estaria postergado para bem mais tarde.

Após concluir a faculdade Clarissa fez um mestrado e conseguiu aulas junto com o

Após concluir a faculdade Clarissa fez um mestrado e conseguiu aulas junto com o marido. Até aí já haviam se passado cinco anos de casados. - Amor! Acho que agora podemos planejar um filho, que acha? – perguntou Clarissa ao marido. - Ainda não querida! Precisamos terminar de pagar o apartamento antes! Será entregue o ano que vem, e não quero estar devendo nada. E precisamos pensar nos móveis e tudo o mais! Ela concordou mais uma vez, já que achava que ele sempre tinha razão. Quando Clarissa concluiu os estudos estava uma linda mulher. Por onde passava os olhares masculinos mostravam-se deveras interessados. Maurício não demonstrava ciúmes porque sabia do amor incondicional da esposa, e ficava vaidoso em sair com ela. Não saíam muito, mas quando saíam o casal chamava a atenção porque formavam um par lindo de se ver. Maurício alto e moreno, cabelos sempre bem cortados e alinhados, roupa bonita, esbelto. Clarissa de corpo escultural parava o trânsito. Parecia que nada poderia atrapalhar a vida dos dois. Mas os anos passavam e nada mudava.

- Amor! Estamos casados há oito anos! Estamos com o apartamento e carro pagos,

- Amor! Estamos casados há oito anos! Estamos com o apartamento e carro pagos, móveis também pagos, que tal agora um filho? – falou Clarissa. - Não minha querida! Ainda não! Somos jovens, podemos agora aproveitar um pouco a vida. Vamos viajar e conhecer lugares, afinal depois de termos um filho não será possível fazer isso por muito tempo. Ainda é cedo! Clarissa concordou, e viajar era uma coisa que ela gostaria de fazer. Sempre estivera presa em casa! Mas o tempo passava e as viagens não eram planejadas. Pelo contrário, quando ela falava sobre isso ele desconversava. Uma noite Maurício ligou dizendo que chegaria mais tarde em casa porque tinha uns trabalhos para corrigir na faculdade. - Não se preocupe com o jantar, como alguma coisa por aqui mesmo!

Clarissa estranhou um pouco, mas logo aceitou o fato, porque às vezes ela também

Clarissa estranhou um pouco, mas logo aceitou o fato, porque às vezes ela também tinha vontade de ficar lá para corrigir os trabalhos, evitando o trazer todos aqueles calhamaços de papel para casa. Aproveitou para descansar e assistir um filme, já que não teria de fazer o jantar do marido. Deitou após o filme e adormeceu. Nem viu a hora que Maurício chegou. A rotina de trabalho no vai e vem faculdade-casa, casa-faculdade, o tempo foi passando. Muitas outras noites Maurício ficou para corrigir trabalhos, provas, ou para reuniões de professores. Virou rotina esse costume e Clarissa nem estranhava mais. Como ela só ministrava aulas nos períodos matutino e vespertino, nunca era necessário ficar à noite na faculdade. Mas na véspera do dia do professor, sua amiga Neuza da assistência social veio lhe pedir uma ajuda, para organizar a festa do dia seguinte que seria dada em homenagem ao corpo docente. Como Maurício já havia avisado que ficaria lá até mais tarde, ela aceitou o convite da amiga e nem foi para casa. Ficou direto depois de sua última aula da tarde. Foi para a sala de professores, onde estava o pessoal que iria ajudar na arrumação, e entusiasmou-se com os preparativos. Nem viu o tempo passar. Quando percebeu já era mais de onze horas da noite. - Nossa! – falou para a amiga – preciso ir - Nunca fiquei tão tarde fora de casa.

Pegou sua imensa sacola onde carregava todo um arsenal de coisas necessárias, inclusive os

Pegou sua imensa sacola onde carregava todo um arsenal de coisas necessárias, inclusive os trabalhos que iria corrigir em casa, e saiu apressada. Lembrou-se, no entanto, que Maurício deveria estar corrigindo provas ou trabalhos em algum lugar, já que a sala dos professores estava ocupada com os preparativos da festa. Seria uma benção, porque tomar ônibus essa hora era difícil demais. E o carro sempre ficava com ele. Parou para pensar onde estaria o marido. Talvez em uma das salas de aulas. Seria um trabalho gigante da parte dela procurar por ele nas salas. O campus da faculdade era mesmo muito grande, não saberia nem por onde começar, já que nunca teve a curiosidade de perguntar a Maurício qual era sua ala no período noturno. Mas havia o quadro onde indicava as turmas por curso. Lá saberia onde ficavam as turmas dele. Desceu um lance de escadas que levava ao térreo e foi até o quadro. Nossa! Nunca percebera como era imenso aquele quadro com uma proteção de vidro para que os engraçadinhos não ficassem riscando as listas de alunos das turmas. Viu que havia dez turmas do curso de direito, curso que seu marido dava aulas, todas as salas no segundo andar. Bem, serão apenas dez salas a procurar, pensou otimista. Nisso o celular na bolsa tocou. - Alô! Clarissa? - Sim amor! Onde você está? - Estou ainda na faculdade! Não se preocupe, vou sair com alguns colegas para beber um chope, fique tranqüila se eu demorar um pouco mais. Ok? - Você está na faculdade? Onde? Qual ala? - Ora, na de sempre amor! - Sei! Mas onde fica?

- Agora estou na portaria saindo com os amigos. Até mais querida! Estou indo.

- Agora estou na portaria saindo com os amigos. Até mais querida! Estou indo. Clarissa olhou para a portaria não havia ninguém. Ela estava de frente para a portaria. Correu e olhou para os lados e viu um grupo de pessoas, e gritou: - Hei! Estou aqui! As pessoas olharam para ela e riram e disseram: - O, Clarissa! Estamos vendo que você está aí. – falou um jovem que era professor de estatística. - O Maurício está com vocês? - O Maurício? Ele não veio hoje para a faculdade. Aliás, acho que ele não dá mais aulas à noite não? Clarissa olhou para o rapaz sem entender muito bem. Como Maurício não dá mais aulas à noite? - Bem! Desde quando ele não dá mais aulas à noite? - Ora! Há mais de um mês! – falou a amiga que havia convidado ela para ajudar nos preparativos da festa. - Puxa! É mesmo! Desculpem, mas com essa vida corrida, às vezes esqueço-me de coisas assim. Alguém vai para o lado de minha casa? - Eu vou! – falou Valéria a professorinha nova do curso de letras – posso levá-la se precisar. - Aceito! Essa hora é triste tomar ônibus. - Se é! Até amanhã pessoal. - Até amanhã!

Clarissa chegou ao apartamento, tomou um banho e sentou-se pacientemente. Queria ver a hora

Clarissa chegou ao apartamento, tomou um banho e sentou-se pacientemente. Queria ver a hora que o marido chegaria. Ela nunca se preocupou em olhar para isso, afinal seu casamento era baseado no amor verdadeiro, porque se preocupar com coisas tão pequenas, como a hora do marido chegar em casa? Mas essa dele não estar dando aulas à noite a mais de um mês, e justamente neste período foi quando ele mais precisou ficar corrigindo provas e trabalhos fora do horário, isso realmente esclareceu alguns detalhes que vinha acontecendo em sua vida ultimamente. Embora ela estivesse sempre disposta para o sexo, Maurício chegava do trabalho e às vezes mesmo sem tomar banho deitava e dormia sem nem lhe dar sequer um beijo. Estava cansado de tanto trabalho, pensava, e deixava por isso mesmo. Quando o convidava para saírem, um jantar, um cinema, uma pizza, ou qualquer coisa que fosse, a resposta era invariável: "Estou cansado". O safado estava cansado era dela. Estava cansado do casamento com ela! E por que não falava então? Por que não se abria? Quem seria a outra, ou outras?

Maurício chegou eram cinco horas da manhã. As luzes estavam apagadas por isso não

Maurício chegou eram cinco horas da manhã. As luzes estavam apagadas por isso não percebeu Clarissa sentada no sofá da sala. Quando estava fechando a porta ela falou: - Bom dia querido! - Que susto amor! - Ora! Susto por quê? - Você não fica até essa hora me esperando! - Então quer dizer que quando não vejo você chegar, é essa hora que você chega? - Não! Só hoje atrasei mais um pouco que o normal. - E o chope com o pessoal estava bom? - Estava como sempre! - Sei! Quem foi com você? - A turma de professores da noite, o Carlinhos, a Valéria, o diretor e outros. - Ah! A Valéria veio me trazer em casa era mais ou menos onze e trinta da noite. A hora que você me ligou. - Como assim? - Fiquei na faculdade a pedido da Neuza para ajudar nos preparativos da festa de hoje. Dia do Professor, lembra? - Foi que horas para lá? - Fiquei direto após a última aula da tarde. Saí de lá onze e pouco. Como disse, quando você me ligou. E também fiquei sabendo que você não dá mais aulas à noite já faz mais de um mês. - Querida! Posso explicar! - Claro que pode! Mas agora preciso dormir porque devo ir à festa dos professores que começa dez horas. É bom descansar um pouco.

Dizendo isso Valéria foi para o quarto e deitou. Mas é lógico, embora fingisse

Dizendo isso Valéria foi para o quarto e deitou. Mas é lógico, embora fingisse dormir, não conseguiu conciliar o sono de jeito nenhum. Quando Maurício ferrou no sono ela levantou. Foi até a garagem, pegou o carro e foi para a faculdade. Mentira a Maurício que era às dez horas o início da festa. Na verdade seria às oito. Haveria uma palestra, depois um café da manhã, e aí começariam as atividades esportivas e brincadeiras até a hora do almoço, que seria servido depois das treze horas. Clarissa brincou muito, divertiu-se até com o discurso enfadonho do diretor. Comeu e tomou refrigerante como criança. A cada vez que alguém perguntava por Maurício ela dizia que ele estava corrigindo trabalhos. O dia passou alegre e feliz aparentemente. Quando ela chegou ao apartamento já era noite. Maurício estava sentado em frente à TV. Parecia assistir a um filme. - Boa noite! – falou ela. - Boa noite! – Maurício respondeu de mau humor. - Foi um dia maravilhooooso! - Deve ter sido! – falou sarcástico.

- Todos os professores estavam lá, quer dizer quase todos! Alguns alunos fizeram homenagens

- Todos os professores estavam lá, quer dizer quase todos! Alguns alunos fizeram homenagens lindas, outros passaram filmes de passagens hilariantes de alguns professores em situações deveras cômicas. Foi divertido e instrutivo. Fiquei sabendo que preciso me cuidar quando faço algo estranho, pois posso estar sendo filmada por algum engraçadinho! Enquanto falava Clarissa ria feliz! Maurício estava taciturno. Olhava de soslaio para a esposa e baixava a cabeça. Terminado o relato da festa ela entrou para o quarto e foi tomar um banho cantarolando. Quando saiu estava fresca e cheirosa. O escultural corpo enrolado apenas em uma toalha pequena. - Bem Maurício! Pela manhã você falou que podia explicar a situação atual de seu comportamento. Sou toda ouvidos. - Quer mesmo saber? Clarissa não falou nada. Apenas olhou com ar de quem está esperando. A toalha já não cobria quase mais nada. Apenas ficava sobre as pernas que estavam dobradas sobre a poltrona. Maurício não a olhava. - Está bem! Se quer mesmo saber aí vai. Não dou mais aulas à noite. Em vez de ir para a faculdade saio com uma garota que estou namorando já faz um ano. É isso que você sabia? Ou ainda ninguém havia lhe contado?

Não! Ela não ouvira direito! Clarissa esperava outra explicação. Esperava que ele dissesse que

Não! Ela não ouvira direito! Clarissa esperava outra explicação. Esperava que ele dissesse que em vez de ir para a faculdade dar aulas, ficava realmente corrigindo provas e depois saía para uma festinha entre amigos, tomar um chopinho ou outra coisa do gênero. Seu coração não estava preparado para esse golpe. Ela era ingênua nesta parte de amor. Amara unicamente o marido desde os quinze anos. Nunca se interessara por ninguém nem por brincadeira. Estava ali nua pensando que a explicação terminaria em um belo abraço e um sexo gostoso. Mas ele estava dizendo que tinha outra, que estava namorando uma garota. Namoraaaaando! Seus ouvidos ouviram, mas o cérebro não assimilava. Como assim? Como pode um homem casado namorar! Isso não existe. Ela andava desconfiada de alguma sacanagem do marido. Alguma transa com alguma vagabunda que não se importa que o cara seja casado. Alguns cafajestes até fazem isso, outros largam da mulher para viver com outra! Agora, namorar!!!! Seu coração começou a doer de uma forma insuportável! A dor no peito era como se uma estaca estivesse entrando devagarzinho, com sadismo, enfiada com requintes de maldade por algum torturador treinado. Sangrava por dentro e o sangue que invadia seu cérebro não a deixava pensar direito. Uma voz conhecida falava e falava a seu lado, mas ela não entendia nada do que essa voz dizia. Parecia a voz de seu marido. O homem com quem ela casara porque amava muito! Dedicara tantos anos de sua vida a ele. Ajudara a construir sua carreira, a pagar o apartamento, o carro. Era seu marido que falava ali a seu lado! O que ele estava dizendo mesmo? - Você não deve levar a sério. . . A sério? O que ele queria dizer com isso? Meu coração está doendo muito! Minha alma está se desfazendo de tanta dor! Minha cabeça agora também dói muito! Está tudo vermelho! É sangue! Meu sangue que está escorrendo pelos meus olhos! O cérebro não entende mais nada. E essa voz? De quem é? Ah! É meu marido! Marido? Mas ele não disse que está namorando uma garota?

- Quero que você entenda. . . Essa voz! Quer que eu entenda? Entender

- Quero que você entenda. . . Essa voz! Quer que eu entenda? Entender o que? - Clarissa! Está me ouvindo? Você está com uma cara! As mãos dele estão me tocando! Que nojo! - Não me toque! – dizendo isso Clarissa voltou a si do choque sofrido e de um salto levantou-se. - Calma querida! Não vou lhe tocar. Mas ouça, preciso terminar! - Não tem nada mais a dizer! Já ouvi tudo o que precisava ouvir. Fique calmo. - Estou calmo. É você que parece não estar bem. Faz vários minutos que parece não me ouvir. - Ouvi sim! Ouvi tudo que precisava ouvir. Entendi tudo que precisava entender. Fique tranqüilo. Clarissa falava calma, ponderadamente como se estivesse dona da situação. Mas seu cérebro ainda estava vermelho de sangue. Seu coração sentia cada vez mais profunda a estaca enfiada lá por mãos estranhas. Mãos treinadas. Seria algum daqueles torturadores japoneses que trabalhavam nos campos de concentração da segunda guerra mundial? Semana passada ela corrigiu alguns trabalhos dos alunos do segundo período, assunto que falava sobre isso. Sim! Só podia ser isso. Aquela estaca estava ficando cada vez mais profunda e doía cada vez mais. Maurício tentou mais uma vez aproximar-se dela. - Querida você está com uma cara! - Não se aproxime! Não é por nada. É só porque minha cabeça está doendo muito! Você entende, não? Estava nua. A toalha caíra ao lado do sofá e ela não juntara. Para que juntar a toalha? Afinal ela estava agora coberta de sangue, seu sangue que jorrava do buraco que a estaca fizera. Mas seu peito estava limpo. Não havia sangue. Ah! Lembrei, o sangue está no meu cérebro. Lentamente foi para a cozinha. Maurício a seguiu.

Na manhã seguinte Clarissa acordou com um amargo na boca. Olhou para o lado

Na manhã seguinte Clarissa acordou com um amargo na boca. Olhou para o lado e estranhamente estava deitada no assoalho da sala, nua, sem nenhuma peça de roupa. A seu lado uma enorme poça de sangue manchava o granito do piso. Granito novinho que ela e Maurício haviam escolhido a dedo, e que só há uma semana estava colocado. Eles decidiram trocar o piso porque o outro era muito feio. Essa poça de sangue iria manchar o piso novo? Sangue? De onde todo esse sangue? Então virou para o outro lado e viu vômito por todo canto. Credo! O que seria isso? Levantou-se e chamou: - Maurício! Onde você está? Correu para a cozinha e estacou assustada. Próximo a pia Maurício estava caído sobre outra poça de sangue. No peito uma faca, sua faca de cozinha, aquela grande que ela costumava usar para destrinchar frango. A faca estava enfiada bem funda na direção onde era o coração do marido. Então lembrou! Lembrou de tudo! A chegada de Maurício de madrugada, a festa dos professores, o retorno, a conversa entrecortada da explicação de Maurício sobre o namoro, os motivos que o levaram a fazer aquilo. Engraçado. Ela lembrava que ele dissera o motivo, cansaço de ter uma única mulher, embora ela fosse linda e ele a amasse, ele quis experimentar outras, não foi só uma, foram várias até encontrar essa que já fazia um ano que namorava. Também era muito bonita e ele estava gostando de ter duas mulheres lindas. E outras coisas que aos poucos ela foi lembrando. E a dor no peito? E a dor de cabeça? Tudo foi se formando claramente.

 Quando ela entrou na cozinha Maurício a seguiu. Ela pegou a faca para

Quando ela entrou na cozinha Maurício a seguiu. Ela pegou a faca para enfiar em seu próprio peito para tirar a estaca que estava lá torturando. Maurício tentou tirar de sua mão mas ela foi firme. Uma força que não era dela, que vinha da dor que estava no peito, empurrou a faca não em seu peito, mas no dele. Maurício foi caindo devagar e seu sangue jorrava da ferida. Aí ela não viu mais nada. Só hoje de manhã. Dormiu. Não viu mais nada! Maurício estava de short e sem camisa, como sempre ficava quando estava em casa assistindo TV. O que fazer agora? Sentou no chão ali perto do corpo do marido morto. Precisava pensar. Era sábado. Não havia aula. Então rapidamente levantou-se, foi ao banheiro tomou um banho para tirar todo aquele sangue. Demorou um pouco para limpar as crostas que secaram durante a noite. Saiu do banho, vestiu-se com calma. Começou por limpar a sala, era fácil, o granito novo soltava a sujeira facilmente. O sangue também. Limpou tudo. O vômito devia ser dela, não lembrava. Depois da sala foi a vez da cozinha. O corpo atrapalhava um pouco, porque tinha que virar daqui para lá, de lá para cá. Se não fosse assim não limparia direito. O corpo não sangrava mais. Ainda bem. Evitava ter que limpar onde já havia limpado. Terminando o serviço de faxina pensou que agora precisava levar Maurício para algum lugar. Mas para onde? Enquanto pensava pegou um grande saco de lixo preto e tentou fazer o corpo do marido caber. Aperta aqui e ali e coube. Mas o saco era fraco. Precisava que ficasse mais forte. Pegou mais dois sacos e reforçou colocando um dentro do outro. Já estava suada com o esforço. Maurício era grande e pesado. Finalmente terminou.

- Puxa vida! Preciso tomar outro banho. Estou imunda! Tomou mais um banho caprichado,

- Puxa vida! Preciso tomar outro banho. Estou imunda! Tomou mais um banho caprichado, vestiu uma roupa leve e pegou o carrinho de compras que ficava na área de serviço. Ainda bem que era grande, colocou o saco dentro com um esforço sobre-humano, afinal não era lutadora nem praticava halterofilismo, mas conseguiu. Ufa! Saiu pela porta de serviço com o carrinho e desceu até a garagem. Não havia ninguém. Era muito cedo ainda para que alguém estivesse saindo. Abriu o porta-malas do carro e com muito esforço conseguiu colocar Maurício lá dentro. Sentou-se ao volante e pensou: para onde irei agora? Ficou por vários minutos sentada ali sem saber para onde ir. Enquanto pensava, vinha a sua cabeça os fatos da noite anterior. A dor no peito e na cabeça estava voltando. Não podia ter dores agora. Maurício estava sufocando dentro daqueles sacos de lixo.

Precisava lembrar logo para onde deveria levá-lo antes que ele sufocasse de vez. Que

Precisava lembrar logo para onde deveria levá-lo antes que ele sufocasse de vez. Que besteira! Ele estava morto! Ela o matara com a faca de cozinha! Onde ela pusera a faca? Depois veria isso. Ah! Lembrei! Vou levar Maurício para o mar. Lá jogarei o corpo. Será que jogo com saco ou sem saco? Lá decidirei! Mas acho que foi ele que se matou? Ou não? Que dor imensa!! O carro saiu suavemente da garagem e Clarissa foi em direção ao mar. Precisava achar um local bem isolado onde ninguém pudesse vê-la. Havia uma praia atrás dos rochedos onde ninguém gostava de ir por ser reduto de drogados e outros marginais. Era um bom lugar. E como ainda era cedo, talvez não houvesse ninguém por lá. O caminho não era muito longo. Apenas alguns quilômetros pela estrada marginal.

Chegou aos rochedos e estacionou na areia que estava firme por estar molhada da

Chegou aos rochedos e estacionou na areia que estava firme por estar molhada da ressaca. Desceu do carro. Olhou para os lados e viu um barco deixado ali por alguém. Aproximou-se devagar do barco e inspecionou por dentro. Era um barco comum desses usados por pessoas que fazem pequenos mergulhos, havia dois remos no fundo. Examinou e viu que era bem fácil colocá-lo na água. Voltou ao carro, abriu o porta-malas e tirou seu pacote estranho de dentro. Puxou o embrulho pela areia molhada até o barco deixando um rastro fundo pelo caminho, e com muito esforço conseguiu colocar dentro. Empurrou a embarcação até a água e entrou, acomodou-se, colocou os remos nos devidos suportes nas laterais do barco. Nossa, com tanto exercício seu coração batia forte e voltou a doer muito, parecia que a estaca inda estava lá. A cabeça também doía e novamente o sangue parecia jorrar para o cérebro. Ficou alguns minutos parada, respirou fundo várias vezes e a dor amenizou. Conseguiu remar devagar e o pequeno barco seguiu dócil pela água que não era muito calma por ser próximo aos rochedos. Subia e descia. A manhã já ia ficando quente com o sol cada vez mais a pino. Remou muito, chegou bem longe da praia e parou de remar, o barco obediente ficou balançando nas ondas enquanto ela pensava. Jogaria com saco ou sem saco? A cabeça doía muito. Então decidiu tirar o corpo do saco e jogá-lo na água.

Com o esforço da ação de empurrar Maurício pela borda, o barco ameaçava virar.

Com o esforço da ação de empurrar Maurício pela borda, o barco ameaçava virar. Mas precisava jogar, então continuou até conseguir que ele deslizasse para a água, para a imensidão de azul esverdeado que agora tão longe da praia estava calmo, espelhando a luz do sol em suas pequenas ondas com um brilho que doía em seus olhos nus. E os sacos vazios? Que fazer deles? Embrulhou-os em um pequeno volume e deixou no fundo do barco. Precisava voltar. Olhou para a água muito límpida, o corpo de Maurício descia devagar para o fundo, ora parava, ora descia mais um pouco. Todo mundo falava que ali em alto mar, naquela região havia tubarões. Sentiu um frio na espinha ao lembrar disso. As lágrimas começaram a escorrer de seus olhos, o seu Maurício, o homem de sua vida, o amor de sua vida descia para as profundezas sem vida e fora ela, sem querer, mas fora ela que o matara por equívoco, era no peito dela que a faca deveria ter entrado, ele não devia ter segurado sua mão com tanta força. Chorou muito olhando as águas. Mas ele tinha outra! Outra mulher linda segundo ele. Quem seria? O choro estancou com o pensamento e as dores voltaram. Começou a remar de volta à praia. Mas onde ela estava? Para que lado era a praia? Olhou o céu e seguiu o vôo das gaivotas, elas sempre iam para os rochedos, era seu lar. Então tomou os remos e tocou para a praia seguindo o vôo das gaivotas. Quando chegou ao apartamento e abriu a porta, um cheiro forte de sujeira azeda invadiu suas narinas. Então ela não limpara direito, precisava fazer nova faxina. Mas agora não, estava exausta! Deitou ali mesmo no sofá e dormiu.

Clarissa acordou com o telefone tocando. Nossa como dormira bem! O sol entrava pela

Clarissa acordou com o telefone tocando. Nossa como dormira bem! O sol entrava pela janela da sala e formava prismas nas paredes através dos cristais do lustre. Atenderia o telefone? Deixe Maurício fazer isso, está tão bom aqui! E o telefone continuava tocando. Ora bolas! Precisava atender! Que horas seriam? A que horas deitara naquele sofá? Levantou-se devagar e olhou para fora, o sol estava no horizonte azul. Era de manhã? Então lembrou tudo novamente! Olhou a sua volta e o piso no meio da sala tinha uma mancha escura. Precisava limpar aquela mancha, o piso era novo não poderia ficar assim. Começou a chorar, chorar muito! As lágrimas escorriam abundantes pelo colo ainda com o vestido sujo. O telefone parou de tocar e ela lembrou que era de manhã. Então seria domingo? Dormira desde o dia anterior sem acordar? Olhou pela janela, crianças brincavam no parquinho infantil do prédio que ficava em frente. O sol lindo e claro da manhã começava a esquentar. O dia seria bom para ir à praia. Não! Nunca mais iria à praia para se divertir. Era viúva agora! Matara o marido e o jogara ao mar, nunca mais poderia ir lá e ver a água que levou seu amor para as profundezas. Morreria de dor se fosse! Por que ele enfiara a faca em seu peito e não no dela? Ou fora ela que fez isso? A dor voltava. Lembrou que deveria limpar o apartamento, estava com mau cheiro.

Passou o dia inteiro limpando, cada vez que terminava o trabalho, começava tudo de

Passou o dia inteiro limpando, cada vez que terminava o trabalho, começava tudo de novo. Limpava, limpava! Até que ficou satisfeita, enfim não sentia mais cheiro azedo. A faca criminosa estava em cima da pia, ainda com o sangue de Maurício. Não vira ela lá. Precisava tirar aquele sangue da faca. O sangue de seu amor. Pegou a faca e abriu a torneira da pia deixando a água escorrer em cima do sangue seco. A pia foi ficando vermelha no fundo à medida que o sangue ia amolecendo. Depois de muito esfregar a faca ficou limpa. Era de aço inox, não ficaram manchas. Guardou a faca em seu lugar no faqueiro em cima do balcão da cozinha.

Nunca mais usaria aquela faca. A cozinha e o apartamento todo estavam impecáveis. Nada

Nunca mais usaria aquela faca. A cozinha e o apartamento todo estavam impecáveis. Nada de manchas nem de mau cheiro. O telefone tocou novamente! Precisava atender, ou não? - Alô! - Clarissa, estava dormindo? Desde ontem que estou ligando e ninguém atende. - Olá Neuza! Estava dormindo sim. Estou com uma tremenda dor de cabeça. - Só quero lembrá-la da reunião amanhã de manhã, o conselho vai decidir as novas cadeiras para o próximo ano, e como já estamos em outubro é melhor fazer isso já, assim teremos tempo de organizar os testes dos novatos. - Sim! Obrigado pela lembrança. - Tenham um bom domingo e até amanhã! - Até! Clarissa falava como um autômato, sem ânimo, sem pensamentos, sem amor. Seu amor se fora. Estava só em seu apartamento, só em sua vida. Seus pais morando longe em outra cidade. Era melhor ver o que faria amanhã. Não iria mais para a faculdade. Apresentaria uma carta de demissão e pronto. E Maurício? Como justificaria sua ausência? Pegou o telefone e ligou para Neuza.

- Alô Neuza? - Sim Clarissa! Começou a chorar. - Que você tem menina?

- Alô Neuza? - Sim Clarissa! Começou a chorar. - Que você tem menina? O choro não diminuía. - Espera que vou aí! - Não! Não venha! Só quero conversar! O Maurício ontem me deixou, foi embora. Disse que tem outra e não me quer mais. Do outro lado Neuza ficou quieta por alguns segundos depois disse. - Pois é querida! Todos sabiam desse namoro! Menos você. - Sabiam? E ninguém me avisou? Nem para me dar alguma indireta?

- Sabe como é! Ninguém gosta de meter o bedelho nessas coisas. Sexta feira

- Sabe como é! Ninguém gosta de meter o bedelho nessas coisas. Sexta feira na festa algumas pessoas até comentaram o fato por você estar sozinha. Alguns achavam que você estava sabendo, outros diziam que ele fez você ir sem ele à festa para ficar com a outra. - Não Neuza, sexta feira na festa eu ainda não sabia de nada. Fiquei sabendo à noite depois que voltei. Ele me comunicou e foi embora. Me deixou! E o choro voltou intenso e dolorido. - Quer que vá até aí para conversarmos? - Não! Prefiro ficar sozinha! Amanhã nos vemos. - Ok! Você é quem sabe. Até amanhã então. Deixou o telefone fora do gancho. Não queria mais falar com ninguém. Queria dormir de novo, dormir e não acordar mais. E o choro convulsivo tomou conta de seu corpo que balançava ao ritmo dos seus soluços doloridos. Maurício estava no fundo do mar.

Na terça feira Clarissa chegou à faculdade bem cedo. Foi direto até a sala

Na terça feira Clarissa chegou à faculdade bem cedo. Foi direto até a sala de professores, abriu seu armário e tirou todas suas coisas de lá. Passou para a imensa sacola, deixou em cima da mesa e foi ter com o diretor. - Bom dia Diretor! - Bom dia Clarissa! Ele parou o que estava fazendo e olhou para a linda professora que ele sempre admirou. Ela estava com o olhar triste. Ele já sabia o motivo. Neuza havia espalhado na segunda feira o porque da ausência de Clarissa. Maurício a abandonara. Gente! Como pode um homem abandonar uma mulher dessas? Ele sabia dos casos de Maurício e nunca entendera aquilo. Mas nunca sabemos o que se passa na cabeça de outro ser humano. Mal sabemos o que passa em nossa cabeça! - Diretor vim entregar minha carta de demissão! E a de Maurício também! Ele pediu para entregar por ele, espero que o senhor aceite.

Fingindo não saber ainda do que se passava, o Diretor falou brandamente: - Por

Fingindo não saber ainda do que se passava, o Diretor falou brandamente: - Por que os dois vão sair? - Bem! Se o senhor ainda não sabe, Maurício me abandonou sexta feira à noite. Foi embora. Pediu para que lhe entregasse a carta. Aí decidi que também não quero mais ficar aqui onde todos sabiam da traição dele e nunca me avisaram. Também fui traída por vocês todos. Então aqui está. E colocou dois envelopes em cima da mesa do diretor e saiu da sala dizendo: - Obrigado pelo tempo que passamos juntos aqui. Quando ela fechou a porta o diretor pensou que às vezes o mundo trai as pessoas, e as pessoas traem outras pessoas por terem sido traídas pela vida. No caso de Maurício ele não entendia o motivo. Clarissa era perfeita. Inteligente, linda e competente. Sentia muito de perder os dois. Eram excelentes profissionais.

Ao chegar ao carro Clarissa pensou o que deveria fazer agora. Rodou pela cidade

Ao chegar ao carro Clarissa pensou o que deveria fazer agora. Rodou pela cidade em polvorosa àquela hora da manhã, hora em que todos os seres vivos capazes e incapazes estavam nas ruas indo e vindo para algum lugar específico. Ela não sabia para onde ir. Rodando sem destino chegou ao local onde estava o barco que a levara ao mar no sábado. Olhou o interior do barco e lá estavam os sacos de lixo deixados por ela. Esquecera-os lá. Pegou os sacos e olhou para eles como se eles fossem os culpados de seu infortúnio. Ficou com tanto ódio dos sacos queria destruí-los. Como fazer para destruir um plástico tão resistente? Achou que se os queimasse eles sumiriam de sua vista. Pensou que deveria ter algo que acendesse no carro. Voltou com os sacos na mão esquerda e abriu a porta com a direita. Olhou no porta-luvas e encontrou um isqueiro, não sabia muito bem porque estava lá um isqueiro se nem ela nem Maurício fumavam. E aquele era um isqueiro de fumante. Mas para o queria serviria. Acendeu o isqueiro e aproximou o fogo nos sacos. O plástico começou a derreter e sumir rapidamente, encolhia e murchava depressa à medida que o fogo aumentava. Ela permanecia com o isqueiro aceso encostado nos sacos que se consumiam. Um cheiro forte se espalhava no ar. Plástico fede muito quando queima e a fumaça é muito preta. Por isso deve ser reciclado, pensou ela, isso polui o ar de maneira irreversível. Quando os sacos queimaram e sumiram em pequenos pedaços de algo fedorento, ela pisou nos restos destruindo o pouco que ficou da espécie de cinza dura resultante do processo químico do fogo e o plástico. Com isso ela pensou destruir o motivo de sua dor. Mas que nada! A dor permanecia lá! na Sentou-se Era dourado, bonito. Virou-o e viu um nome gravado. Ruth. Quem seria Ruth? Não conhecia ninguém com esse nome. Olhou o mar, as águas terminavam nas rochas com um pequeno estrondo, e vinham molhar a areia da praia onde estava. A maré estava baixando. Logo a areia iria ficar solta. Era melhor sair com o carro dali antes que não pudesse mais fazer isso. Seu carro não era exatamente um bug para andar na areia solta. Entrou, colocou o isqueiro de volta no porta-luvas e arrancou.

Na garagem de casa ela lembrou do isqueiro. A dor voltara. Pegou o isqueiro

Na garagem de casa ela lembrou do isqueiro. A dor voltara. Pegou o isqueiro do porta-luvas e levou consigo para o apartamento. Ali sentada no sofá onde Maurício ficava todo dia para assistir TV, enquanto ela preparava um lanche ou fazia alguma outra coisa, seu pensamento parou no objeto dourado em sua mão. Ruth! Quem seria? Um Celular tocou. Não era o seu. Ela não mudara os toques como Maurício fazia para saber quem estava ligando antes de atender. O toque de seu celular era o mesmo para todo mundo. Mas o dele tinha um toque para cada grupo de pessoas, assim ele sabia de antemão quem ligava, ou de onde ligavam. A música do toque era Love Me Tender de Elvis Presley. Olhou no visor do celular e dizia: Ruth. Ela nunca pegara o celular do marido para olhar quem ele tinha na lista. Não precisava saber com quem ele se comunicava. Ela confiava nele porque o amava muito! E como ela, ele tinha uma lista imensa de alunos, professores, amigos e parentes na memória de seu celular. Às vezes ele dizia, estou precisando de um celular com mais memória, tem muita gente aqui. E ria com aqueles dentes lindos que tinha. Como ela o amava! O celular continuou tocando até parar. Deve ter caído na caixa postal. Ruth. Ela tornaria a ligar por certo. Será que deveria atender? Saberia quem era Ruth. Estava com um vazio no estômago. Então lembrou que desde sexta feira não comia nada. Nada mesmo. Será que tomara água em algum momento? Não lembrava. Achava que não. O celular tocou novamente. Love Me Tender. Pegou o aparelho e apertou o botão. Ficou em silêncio ouvindo. - Oi querido! Que houve? Está me ouvindo? Por que não ligou desde sexta feira? Responde homem! Clarissa apertou o botão. Desligou. A dor no peito era muito grande.

Novamente tocou o celular. Desta vez falou: - Alô! - Desculpe foi engano. Tocou

Novamente tocou o celular. Desta vez falou: - Alô! - Desculpe foi engano. Tocou novamente. - Alô! Aqui é Clarissa. Ex-esposa de Maurício, quem fala? - Olá! Meu nome é Ruth. Porque o celular de Maurício está aí? - Ele o esqueceu. Foi embora sábado e o deixou aqui. - Foi embora? Para onde? - Não sei. Ele me abandonou e saiu sem dizer para onde ia. - Ok! Obrigado! O estalido de tuuu. . . ficou no ouvido de Clarissa por muito tempo. A dor estava diminuindo agora. A cabeça não doía mais. O peito ainda um pouco. Pegou o celular, a pasta do marido, alguns objetos pessoais e desceu com eles até o incinerador do prédio. Lembrou, o celular não posso colocar no fogo. Abriu o aparelho, retirou o chip de dentro e jogou no fogo junto com os demais objetos. Aquele incinerador era papéis e lixo seco. Tudo queimou rapidinho. Voltou ao apartamento. Estava com as mãos geladas. Na cozinha abriu a geladeira e olhou. Havia muita coisa ali. Maurício sempre foi bom de garfo, então todo dia enchia a geladeira de tudo que gostava. Hummm! Que fome! Pegou algumas frutas, um iogurte e colocou na mesinha da cozinha. Comeu tudo. O vazio do estômago foi preenchendo. Mas o vazio na alma era imenso! No entanto a dor sumira. Nem a cabeça nem o peito doíam mais.

Era sábado novamente. Clarissa não saíra de casa para nada. Passou a semana fechada.

Era sábado novamente. Clarissa não saíra de casa para nada. Passou a semana fechada. Não atendera telefone, nem celular nem fixo. Então resolveu se arrumar e sair para um passeio a pé pelos arredores. Ao passar pela portaria o porteiro a cumprimentou sorrindo. Poucas vezes passava pela portaria, eles saíam sempre de carro. Entravam e saíam garagem e pelos elevadores. A correspondência era sempre uma discussão para ver quem ia buscar nas caixas lá no térreo. Corriam um atrás do outro pelo apartamento dizendo: Hoje vai você. Não, eu fui a última vez! Então a correspondência vai ficar lá! E a brincadeira seguia até que um dos dois descia de chinelo e de pijama para pegar. O outro ficava rindo. A rua estava deserta! Há duas quadras dali ficava o mar. Não o mar dos rochedos. O mar da praia onde os turistas ficavam torrando a pele branca até ficar como camarões. Clarissa seguiu pela rua que ia dar na praia. Quantas vezes os dois fizeram aquele trajeto? Desde que vieram morar no apartamento novo. Quanto tempo? Engraçado. Não lembrava. Devia lembrar, esperara com tanta ansiedade para receber o novo apartamento que tantas economias fizera para tê-lo. Mas não lembrava quanto tempo morava ali. Chegou à praia. Cheia de gente! Quanta gente! Era sempre assim nos finais de semana em que o sol brilhava daquele jeito. Ficou olhando as ondas espatifarem-se na areia, parada embaixo de uma árvore que sombreava a calçada. Todos os homens que passavam olhavam para ela admirando sua beleza. Alguns até aventuravam um gracejo. Ela nem ligava para o fato. Estava acostumada. Onde quer que fosse havia um homem olhando-a de cima em baixo, mesmo quando estava com Maurício. Uma voz falou a seu lado: - Bom dia! Lindo o mar hoje! Ela virou para o homem de meia idade que a olhava com admiração. - Bom dia! Sim, muito lindo mesmo! - Mora aqui? – perguntou ele para iniciar uma conversa

- Sim! Moro logo ali. - Também moro. Gosto de vir à praia cedinho

- Sim! Moro logo ali. - Também moro. Gosto de vir à praia cedinho quando o sol ainda não está muito forte. - Eu também. Embora de vez em quando goste de dar um bronzeado. Ele riu olhando a linda seda dourada da pele dela, sobressaindo no decote do vestido leve que usava. - Você é muito bonita! - Obrigado! - Já tomou o café da manhã? Se não tomou posso convidá-la? Clarissa olhou par ao cavalheiro simpático e disse: - Está bem. Não tenho nada melhor para fazer. E seguiram caminhando devagar pela calçada da avenida até um café na esquina, muito bem freqüentado pela população local e pelos turistas. Ela gostava de ir lá uma vez ou outra.

Conversaram bastante! Ele contou que era casado, tinha dois filhos, um rapaz e uma

Conversaram bastante! Ele contou que era casado, tinha dois filhos, um rapaz e uma moça. Sua esposa viajava muito e os filhos estudavam um nos Estados Unidos o outro na Inglaterra. Sua esposa estava hora com um, hora com outro, e para ele sobrava pouco tempo. Mas assim era a vida. Depois que se tem filhos, a vida gira em torno de suas necessidades. Assim que se aposentasse dali a alguns anos, pensava em ir morar em Londres com a filha. Agora precisava trabalhar, para poder ter uma vida tranqüila no futuro. E você? - No momento estou desempregada. Meu marido me abandonou, sou sozinha, nunca tive filhos. - Que pena! Uma mulher tão bonita! - Bondade sua! - Me chame de Marcos. E seu nome como é? - Clara! Não sabia por que mentiu o nome. Parcialmente. - Clara! Hoje vou fazer um passeio de iate com alguns amigos, quer participar? Sairemos ao meio dia. Um passeio curto, só até a noite, apenas para relaxar. Clarissa pensou. Que tinha a perder? Nunca havia olhado um iate de perto. Deveria ser bom um passeio assim.

- Tudo bem. Aceito! O homem demonstrou surpresa no olhar. Por certo não esperava

- Tudo bem. Aceito! O homem demonstrou surpresa no olhar. Por certo não esperava um assentimento tão rápido. Mas abriu um enorme sorriso quando disse: - Onde posso pegá-la? - Aqui mesmo! - Ótimo. Vou buscar meu carro ali atrás e volto aqui e a pego. - Calma! Preciso ir em casa e colocar trajes convenientes. - Está bem. Então acompanho você. Posso? Onde mora? - Aqui perto! E os dois seguiram conversando sobre coisas amenas. Um comentário sobre um traje em uma vitrine, uma moça que passava com tatuagens pelo corpo todo os fez rir. Chegaram à esquina onde Clarissa morava. - Pode aguardar aqui? Volto logo. O homem não podia fazer nada além de concordar e ficou esperando. Quinze minutos depois Clarissa apareceu com sua sacola enorme pendurada ao ombro. Usava o mesmo vestido, mas por baixo notava-se um maiô azul. O carro de Marcos estava estacionado ali perto. Chegaram rapidinho e ele abriu a porta para ela entrar. A beleza de Clarissa combinava com a Mercedes do cavalheiro. Dois meses depois, Marcos não apareceu ao trabalho. Todos pensaram que ele teria viajado para os Estados Unidos ou à Londres. Ele sempre fazia isso.

Clarissa indicou o caminho para seu novo companheiro. Foram em direção aos rochedos. Fazia

Clarissa indicou o caminho para seu novo companheiro. Foram em direção aos rochedos. Fazia oito meses que Maurício afundara no alto mar, lá onde havia muitos tubarões como o povo do local falava. Os parente e amigos perguntaram muitas vezes por ele. - Não sei! Nem quero saber! Ele me abandonou! Deve estar por aí com alguma vagabunda que encontrou em seu caminho como tantas outras. E as pessoas acreditavam! Afinal ele aprontara tanto com ela que ninguém duvidava disso mesmo. Todo mundo sabia das sacanagens dele. Menos ela! - Chegamos! Falou ela acariciando a perna do homem bonito a seu lado. - Que lugar estranho para um encontro. Prefiro um motel confortável. Mas já que hoje prometi, vamos lá. Ela deu um sorriso lindo para o homem, beijando-o com aparente paixão. Ele sucumbiu e desceu do carro. Ela tirou o belo vestido verde musgo e o deixou no assento da BMW branca. A beleza de Clarissa em seu fio dental minúsculo o deixou maluco como sempre ficava nesses dois últimos meses. Estava cada vez mais preso ao corpo escultural e meiguice daquela linda mulher. Aproximou-se e abraçou o lindo corpo. A grande e inseparável bolsa da moça atrapalhou um pouco o abraço. - Quer deixar a bolsa no carro? - Não querido! Aqui tenho uma surpresa para você! E afastou-se um pouco para frente dele, rindo com seus maravilhosos dentes brancos. Ele tentou alcançá-la correndo e ela corria mais em direção aos rochedos. O carro ficara lá embaixo, próximo à estrada. Não era hora para um carro como aquele subir na areia solta. Junto ao penhasco ela o levou para perto de um pequeno barco, velho e sem tinta que estava ancorado. Não devia ser abandonado porque demonstrava uso, embora fosse notório que o uso não era freqüente.

- Olha! Um barco! – disse ela fingindo surpresa. - Sim! Um barco velho

- Olha! Um barco! – disse ela fingindo surpresa. - Sim! Um barco velho e carcomido. Nem deve navegar mais. - Ora! Deve sim! Mas agora quero que você me ame. Muito! E atirou-se nos braços do homem que a levou para as sombras dos rochedos, onde fizeram amor por bastante tempo. O cara não era mais jovem, e após essa maratona com uma mulher fogosa como Clarissa, prostou-se na areia e dormiu em seguida relaxadamente como sempre fazia. Clarissa foi ao mar e lavou-se. Sabia que o cara dormiria por um bom tempo. O safado! Voltou toda molhada e pegou sua bolsa. Dentro estava a sua faca de cozinha, já muito usada nos últimos meses, esse era o quarto depois de Maurício que ela iria achar o coração. A dor no peito voltou. A dor de cabeça também. À sombra do rochedo ia se afastando para o lado, o corpo adormecido do homem já estava parcialmente ao sol. Antes que ele acordasse Clarissa chegou de mansinho e com toda a força que dispunha enterrou a faca no coração do homem que a poucos minutos a fizera delirar de prazer. Esperou um pouco. O pulso dele parou. A respiração já era. Estava morto. Safado! Tinha mulher e filhos o desgraçado. Merecia morrer. Nenhuma mulher bonita pode tirar do lar um homem, seja ela quem for.

Seu coração doía muito! Sua cabeça também! Mas o homem dentro do barco seria

Seu coração doía muito! Sua cabeça também! Mas o homem dentro do barco seria lançado como todos os outros no mesmo lugar onde Maurício estava. Era lá o lugar dos traidores. Quando voltou à praia, colocou o barco no lugar de sempre. Antes de sair da água limpou o sangue do barco. Depois na areia. O lugar era mesmo deserto! Nesses oito meses, ninguém usara o barco a não ser ela. Nunca vira ninguém por ali, nem mesmo quando vinha sozinha olhar o mar de cima dos rochedos. Mais ao longe, havia muito movimento. Pessoas iam e vinham. Mas ali não! Era só silêncio! Desceu pelas pedras, chegou ao carro, pegou o vestido e vestiu. Sua pele bronzeada sobressaia no verde musgo do belo vestido tomara que caia. A cabeça doía! Sentou ao volante do carro e arrancou de mansinho. Deixaria o carro no aeroporto, como fizera com todos os outros. No porta luvas havia dinheiro. Pegou. Ia precisar dele.

Nove meses após a morte de Maurício, alguém bateu em sua porta. Olhou pelo

Nove meses após a morte de Maurício, alguém bateu em sua porta. Olhou pelo olho mágico. Eram dois homens bem vestidos. Quem seria? Abriu devagar, arrumando um fino vestido sobre o corpo bem feito. - Bom dia! – falou o mais idoso. - Bom dia! – disse ela curiosa. - Senhora Clarissa Silva? - Sim! - Sou o inspetor de polícia Reginaldo! Esse é meu assistente Fábio. - Prazer! Em que posso ajudá-los? - Viemos lhe fazer algumas perguntas. Pode ser? - Claro! Fiquem à vontade! Entrem e sentem, por favor. O corpo escultural de Clarissa, mal escondido no vestido quase transparente fez os dois homens olharem para o outro lado. Eles estavam a trabalho, não podiam deixar a beleza estonteante dela ofuscar suas mentes.

- Senhora! Conheceu Maurício Silva? - Claro! Era meu marido até me abandonar. -

- Senhora! Conheceu Maurício Silva? - Claro! Era meu marido até me abandonar. - A senhora sabe onde ele se encontra agora? O pensamento de Clarissa voltou para o alto mar onde o corpo de Maurício descia devagar nas águas límpidas ao encontro dos tubarões. - Não senhor! Tentei entrar em contato com a família para ver como ficava minha situação. Não sou nem casada nem descasada. Quero regularizar isso. Afinal posso querer casar novamente um dia, não é mesmo? O auxiliar do inspetor pensou logo que seria uma boa idéia. - Sei! Quando foi que a senhora o viu pela última vez? Novamente o corpo de Maurício descendo nas águas límpidas. - Na sexta feira dia onze de outubro passado, era noite quando ele disse que tinha outra mulher e que iria embora. Saiu e nunca mais o vi. - A senhora sabe quem é essa mulher?

- Não! Infelizmente não sei! Mas encontrei no porta-luvas de meu carro um isqueiro.

- Não! Infelizmente não sei! Mas encontrei no porta-luvas de meu carro um isqueiro. E entrou no quarto para pegá-lo. Entregou ao policial. Não é nosso e de ninguém que eu conheça. Guardei-o porque achei que um dia me seria útil. Nunca foi. Talvez sirva para os senhores. - A senhora é professora? - Sim. - Ainda leciona? - Não senhor! No momento estou parada. Mas só por mais alguns dias, até meu coração assimilar o abandono e minhas economias durarem. Aí volto a trabalhar. - Tem parentes senhora Clarissa? - Sim! Muitos! - Pode nos fornecer o endereço de algum deles? - Claro! De todos se precisarem! - Agradeceríamos! Clarissa entrou para o quarto novamente e voltou com uma agenda onde havia muitos endereços. Entregou a agenda e esperou. Todos são parentes? Ela riu lindamente e disse: - Claro que não. Aí tem amigos, ex-alunos e parentes. Parentes do meu lado e do lado de meu ex-marido.

Os agentes anotaram o que acharam necessário e devolveram a agenda. - Senhora Clarissa

Os agentes anotaram o que acharam necessário e devolveram a agenda. - Senhora Clarissa agradecemos sua atenção e por enquanto é só. - Posso lhes fazer uma pergunta? - Quantas achar necessárias. - Por que os senhores estão fazendo essa pesquisa? - Não é pesquisa, senhora, é uma investigação. Foi a mãe de seu marido que está estranhando ele não entrar mais em contato por tantos meses. Então pediu uma investigação. - Ah! Entendo! Se puder ajudar em algo mais estou à inteira disposição. - Agradecemos. Até mais ver senhora! - Até mais! Quando os homens saíram, Clarissa viu todos os cinco corpos descerem pelas águas límpidas do alto mar. Só Maurício estaria ligado a ela. Para os demais, lhes dera nomes falsos, e os cafajestes, para não se incriminarem com as esposas e amigos de trabalho, sempre a deixavam no escuro e longe de olhos indiscretos. Seria uma incógnita para as famílias o seu desaparecimento. Ela não existia.

Após a saída dos policiais Clarissa fechou-se em casa novamente. Não tinha nenhuma vontade

Após a saída dos policiais Clarissa fechou-se em casa novamente. Não tinha nenhuma vontade de sair. Sempre que saía alguém lhe abordava e queria transar com ela. Não importava se era jovem ou velho, a meta deles era a mesma. Todos eles, sem exceção, eram casados. Por que os homens casados fazem isso? A dor de cabeça aumentava dia e a dor no peito também. Quando lembrava de Maurício seu coração doía muito. Então estava doendo toda hora porque a toda hora ela lembrava dele. Nem podia ser diferente. O apartamento fora feito e decorado pelos dois juntos. Tudo o que havia ali fora os dois que colocaram. Todas as peças eram a imagem do casal. Era uma festa quando conseguiam comprar algo mais bonito para enfeitar um canto qualquer. Nada foi comprado em separado, os dois estavam sempre juntos no ato da escolha. Por onde quer que olhasse Clarissa via Maurício. Sua dor foi aumentando.

Certo sábado, Clarissa nem lembrava mais as datas, Neuza sua amiga da faculdade veio

Certo sábado, Clarissa nem lembrava mais as datas, Neuza sua amiga da faculdade veio visitá-la. - Bom dia menina! - Bom dia Neuza, entre! - Como você está? - Estou bem! - Estava preocupada com você e vim ver se precisa de alguma coisa. Quanto tempo faz que você não sai daqui de dentro? - Algum tempo. Nem sei! Neuza entrou na cozinha e abriu a geladeira. Havia pouca coisa lá dentro. - Você está magra, com a pele macilenta. Tem se alimentado direito? - Acho que sim! - Como acha que sim? - Nem sei! Como alguma coisa quando estou com vazio no estômago!

- Minha querida amiga! Assim não se resolve nada! E se Maurício aparecer e

- Minha querida amiga! Assim não se resolve nada! E se Maurício aparecer e ver você desse jeito? Vai pensar todo vaidoso que você está se destruindo por causa dele. Os homens são egoístas e ficam felizes a nos verem sofrendo por eles. Preste atenção! Nenhum homem merece nosso sofrimento! Muito menos Maurício que a traiu tantas e tantas vezes. Clarissa fechou os olhos e viu o corpo do marido baixar nas águas. - Vamos! Levante daí e vamos sair. Vamos ao shopping. Deve haver alguma coisa que você queira comprar, ou apenas olhar as vitrines. Isso já levanta o astral. - Não obrigado! Prefiro ficar aqui sozinha! - Clarissa! Você é a mulher mais inteligente que conheço e sabe que isso é depressão da braba. E depressão feminina se cura fazendo compras. Vamos lá. Tomaremos um sorvete com cobertura de chocolate. Ou comeremos um belo crepe com morangos.

Enquanto falava Neuza foi ao armário e pegou um vestido bonito e colocou em

Enquanto falava Neuza foi ao armário e pegou um vestido bonito e colocou em cima da cama desfeita. Abriu a janela do quarto para ventilar. Foi até a sala pegou Clarissa pela mão e a levou até o banheiro. Tirou sua roupa enquanto ela choramingava como criança doente. Abriu a água e a empurrou para baixo do chuveiro. Passou –lhe o sabonete e dizia: - Vamos! Lave-se! E a água escorrendo pelo corpo de Clarissa foi lhe abrindo a mente, então começou a passar o sabonete e esfregar. Foi esfregando devagar a princípio, depois com mais vigor até que começou a ficar com cores nas faces. Saiu do banho com outra fisionomia. Enxugou-se rapidamente passando a toalha com força pele. Saiu do banheiro e procurou a roupa e vestiu o que Neuza havia colocado na cama. O quarto já não cheirava tão ruim com a janela aberta. - É isso aí amiga! – falou Neuza. - Obrigado! Estava precisando disso. - Sei que estava! Nada de depressão. Nada de se entregar para a tristeza. Homens vão e vêm. Todos são iguais, uns cafajestes.

- É! Eu que o diga! E lembrou-se dos corpos caindo na água azul

- É! Eu que o diga! E lembrou-se dos corpos caindo na água azul esmeralda do alto mar. Olhou pela janela, o sol brilhava na manhã quente. Que bom morar em um país tropical. Sempre haveria sol e calor por mais que fosse agosto. - Estamos no mês de agosto? Antes de responder Neuza olhou penalizada para a amiga. - Sim! Estamos. - Que dia? - Doze de agosto. - Dez meses que estou sem meu marido. - Sem o cafajeste de seu marido você quis dizer. Clarissa olhava pela janela e via as crianças brincando lá fora. Mauricio nunca quisera filhos. Quase nove anos de casados e ele sempre resistindo à idéia de tê-los. - Será que seria bom ser mãe? Neuza foi até a janela e olhou para baixo onde os peraltas faziam traquinagens. - Sei lá amiga! Nunca os tive! - Mas você nunca quis casar!

- E vendo você nesse estado de ânimo, acho que vou continuar com a

- E vendo você nesse estado de ânimo, acho que vou continuar com a mesma idéia até morrer. Clarissa olhou para a amiga e lhe deu razão mentalmente. Melhor fora nunca ter se casado. Nunca ter se apaixonado. - Está bem! Vamos ao shopping. Mas previno-a que estou com pouco dinheiro e nada posso gastar. - Para nos divertirmos não é necessário dinheiro. Basta algumas moedas para um sorvete. Vamos lá. Passaram horas no shopping e Clarissa ficou com fome. - Vamos voltar, estou com fome e aqui é muito caro para comer. - Nada disso! Eu pago, vamos comer aqui mesmo. E puxou a amiga pela mão como se fosse uma criança, e a levou para a praça de alimentação. Rindo de tudo as duas procuraram uma mesa e acomodaram-se. Um garçom bem apessoado e gentil aproximou-se com um cardápio.

As duas pareciam crianças em dia de véspera de Natal. Riam de tudo. O

As duas pareciam crianças em dia de véspera de Natal. Riam de tudo. O garçom sério as esperava em pé. Após escolhido o jantar, ficaram falando sobre alunos e colegas de trabalho. Neuza procurava diplomaticamente, não levar o assunto para os lados perigosos das lembranças da amiga. Falava de amenidades acontecidas recentemente na faculdade. Isso fazia Clarissa rir. Já tarde da noite saíram do shopping e Neuza deixou a amiga em casa mais tranqüila. Ficou feliz por ter feito o papel de terapeuta improvisada com ela.

Na manhã seguinte o telefone tocou. Era Valéria, a nova professorinha de letras que

Na manhã seguinte o telefone tocou. Era Valéria, a nova professorinha de letras que conhecera naquela noite fatídica. - Bom dia Clarissa! - Bom dia Valéria! - Liguei para ver se você quer vir a um almoço em casa de uns amigos. Estarão vários de nossos colegas professores lá. - Não sei Valéria! Estou sem vontade de sair. - Ora! Vamos lá! Se quiser eu ou a Neuza passaremos para pegá-la. Clarissa pensou que poderia ser agradável, além do que seria de graça. - Está bem. A que horas vem me buscar? - Passo aí dentro de uma ora, ok? - Está bem. Esperarei lá embaixo. Em uma hora estava pronta e esperando a amiga como prometera. Até estava feliz!

Chegaram ao local e havia muita gente. Era uma grande reunião de muitos amigos.

Chegaram ao local e havia muita gente. Era uma grande reunião de muitos amigos. A festava animada. Aqui jogavam baralho aos gritos, ali jogavam futebol em um campo improvisado, mais adiante havia uma churrasqueira com grande quantidade de carne assando, e uma legião de improvisados assadores a dar palpites. Homens e mulheres, a maioria deles professores graduados divertindo-se com suas famílias e amigos. Que bom, pensou Clarissa. Acertei em vir. Após ter cumprimentado todos os conhecidos e tendo sido apresentada aos que não conhecia, ela sentou-se a um canto e ficou bebericando um suco gelado. Ainda estava convalescente da reclusão a que se propusera voluntariamente. - Olá! Você é Clarissa? Era uma simpática e bonita moça morena, de evidente ascendência africana. - Sim! Muito prazer! – Clarissa estendeu a mão para a moça que fingiu não perceber. Meio sem jeito recolheu a mão estendida.

A moça continuou: - Meu nome é Ruth, sou professora na faculdade de direito

A moça continuou: - Meu nome é Ruth, sou professora na faculdade de direito onde você lecionava. O nome da moça fez o peito de Clarissa voltar a doer muito. Sua cabeça começou a latejar novamente como a dias já não fazia. Ficou sem fala e deve ter empalidecido porque sentiu a pele gelar e suar frio. A moça não obtendo resposta de Clarissa continuou: - Conheci seu marido! De uma hora para outra ele sumiu como se o sol o houvesse derretido. Nunca mais ouvi falar dele. A voz de Clarissa recuperou-se magicamente. - É! Eu sei! Também nunca mais tive notícias dele. - Gostaria de saber com um isqueiro de minha propriedade foi parar nas mãos da polícia. Você sabe me esclarecer? - Isqueiro? Clarissa estava pensando rápido. Era ela então a Ruth amante de seu marido. Era ela a dona do isqueiro que usara para queimar os sacos plásticos pretos, invólucros solidários de um corpo muito amado.

- É! A polícia apareceu em minha casa com ele nas mãos, perguntando se

- É! A polícia apareceu em minha casa com ele nas mãos, perguntando se era meu. Precisei confirmar porque meu nome estava gravado nele. Era de ouro. Presente de seu marido. A maldade era evidente na voz dela. - E posso saber por que está me contando essas coisas? Afinal você sabe que ele saiu de casa faz tempo, e não sei onde ele anda. - Não sei! Às vezes acho que os policiais têm razão. Essa história está mal contada. Mas não por mim. Mas por você. Falei isso a eles. Mas infelizmente eles estão no meu pé por causa do isqueiro. A essa altura a dor estava intensa. Mas Clarissa ficou calma. - Ok! Vou ver se como algo por aí! Então o isqueiro era de ouro! Meu marido era um homem generoso! Levantou e saiu para o pátio onde as crianças brincavam de pega. Enquanto ela fazia economias em casa para a tal viagem prometida, Maurício dava isqueiros de ouro à amante. Que ódio!

Ruth a alcançou e falou: - Como é mesmo? Seu marido "era" um homem

Ruth a alcançou e falou: - Como é mesmo? Seu marido "era" um homem generoso? Não é mais? Clarissa olhou para ela e viu que colocara o verbo no tempo errado. Essa moça é professora de direito, é um perigo falar com ela. Todo advogado tem muito de detetive. - Sim! Ele não é mais meu marido desde a noite em que disse que estava com você e que eu o toquei de casa. Para mim ele já era. E para você? Ele ainda é? Ruth saiu de sua frente com o olhar de uma raposa que lhe foram tiradas as uvas. Clarissa ficou mais um pouco de tempo por ali, e viu quando Ruth saiu da casa bem antes do almoço servido. Ela almoçou e depois despediu-se dizendo que estava cansada. Todos entenderam a decisão dela. Afinal ainda era convalescente da perda de um marido safado.

Não aceitou a carona oferecida por Neuza. Preferia ir a pé até um ponto

Não aceitou a carona oferecida por Neuza. Preferia ir a pé até um ponto de ônibus, ou quem sabe até sua casa. Era bem longe, mas uma boa caminhada lhe faria bem. Absorta em seus pensamentos não percebeu que alguém a seguia em um carro. O carro parava e a deixava ir adiante. Logo depois se aproximava devagar, depois parava novamente. Se ela estivesse atenta ao que acontecia não seria difícil ver que o carro a seguia de perto. Andou muito tempo. Cansou e então procurou um ponto de ônibus. Afinal estava desacostumada para uma caminhada tão grande, sem contar os saltos. Chegou ao ponto de ônibus e esperou até ver um que a levava até próximo a sua casa. Quando desceu do ônibus, o carro que a seguia antes estava parado atrás. Destramente a pessoa ao volante procurou uma vaga para estacionar. Como era domingo foi fácil. Lentamente ela estava indo pela rua em direção a seu prédio que ficava a umas duas quadras do ponto de ônibus. O homem que descera do carro a alcançou rapidamente. - Olá moça! Lembra de mim?

Clarissa absorta em seus pensamentos assustou-se com a abordagem. Mas sempre fora educada então

Clarissa absorta em seus pensamentos assustou-se com a abordagem. Mas sempre fora educada então respondeu com calma: - Olá! Olhou para o homem, mas sinceramente não lembrava dele. - Desculpe abordá-la assim. - Sem problemas. Em que posso ajudá-lo? Achou que fosse um turista perdido pelos arredores. Havia muitos deles por ali que se perdiam e não conseguiam voltar a seus respectivos hotéis. - Você se chama Clara? Esteve em meu iate junto com um amigo comum, o Marcos. Clarissa lembrou então. Era o dono do iate. Vira-o só aquele dia e nunca mais, depois Marcos a escondia de todos, não pretendia que ninguém soubesse de suas aventuras com ela. - Ah! Sim! Lembro agora. E o seu amigo o Marcos está bem? - Para falar a verdade, nunca mais o vi e ninguém sabe para onde foi. Você o viu alguma vez depois daquele dia? - Não! Nunca! Até gostaria porque ele é bem divertido.

E dizendo isso fez um trejeito matreiro que todos os homens gostavam. - Que

E dizendo isso fez um trejeito matreiro que todos os homens gostavam. - Que pena! Achei que você fosse a causa do desaparecimento dele. Sabe como é. Homem de uma certa idade quando se apaixona por uma moça linda como você, pode deixar tudo para viver escondido com seu amor. Clarissa riu alto e com gosto. - Senhor! Nem por sonhos seu amigo se apaixonou por mim. Aquela foi a única vez que saímos e nunca fizemos sexo, se quer saber. Não haveria como ele ou eu apaixonar-se um pelo outro. Sou só. - Está bem! A família está sem saber o que dizer. Ele simplesmente sumiu. - E faz tempo isso? - Que a família deu por conta fazem dois meses. Até aí todo mundo achava que ele estava viajando. Mas agora tudo leva a crer que ele pode ter feito uma outra viagem, aquela que todos fazemos um dia.

acha? - Como assim? - Morrer amiga. Morrer! A essa altura haviam chegado ao

acha? - Como assim? - Morrer amiga. Morrer! A essa altura haviam chegado ao prédio onde Clarissa morava. - Moro aqui. - Que pena! Estava boa a conversa. - Pois é, mas preciso entrar. Seria bom que a família de Marcos procurasse ajuda profissional, não - Você quer dizer a polícia? - É! Não seria o caminho normal a tomar? - Pois é! Eles estão fazendo isso! - Que bom! Então não se preocupe que tudo se resolverá! Clarissa estendeu a mão ao homem que a tomou delicadamente e desceu a rua de volta ao carro, enquanto Clarissa entrava no prédio.

Então agora a polícia está envolvida com o desaparecimento de Marcos também. Era para

Então agora a polícia está envolvida com o desaparecimento de Marcos também. Era para se pensar! Lembrou da poupança que estavam fazendo para a tão falada viagem. Nem se lembrava dela mais. Quanto teria? Voltou sobre seus passos e foi até um caixa eletrônico próximo à Avenida da Praia. Seria fácil verificar o montante, afinal ela possuía a conta e a senha, pois a conta era conjunta. Nunca fora verificar, era sempre Maurício que o fazia. E ela andava praticamente sem grana. Sem trabalho suas economias estavam se esgotando. No caixa eletrônico àquela hora do domingo era um fervor. A fila era imensa! Resignadamente postou-se à espera que a fila andasse. Alguns segundos e logo atrás já havia mais uma dezena de pessoas. Pareciam brotar do chão. A sorte que aquele posto de atendimento tinha uma dúzia de caixas funcionando. A fila andava depressa. Quando chegou sua vez ficou feliz. Iria ver quanto dinheiro possuía. Fez os trâmites de conta e senha e puxou o saldo. Mesmo o marido tendo surrupiado dinheiro para dar um isqueiro de ouro para a outra, o saldo era razoável. Que bom! Agora poderia ficar tranqüila e faria uma viagem até a casa de sua mãe no interior. Precisava de um colo, e era o melhor colo do mundo que iria procurar.

Clarissa chegou à casa de sua mãe era nove horas da manhã. Todos a

Clarissa chegou à casa de sua mãe era nove horas da manhã. Todos a estavam esperando porque avisara a hora que chegaria. Seu ônibus foi pontual. A pequena cidade do interior do Estado onde morava sua mãe, era algo digno de nota. Todas as famílias se conheciam e sabiam até o que teria no café da manhã de cada vizinho. Então a chegada da filha que desde que casou aos dezoito anos não viera mais visitar ninguém, era um fato comentado a todo vapor pela vizinhança em polvorosa. Clarissa desceu do ônibus e parecia que a cidade toda estava ali para vê-la. - Olha que linda que ela é! – falou uma das vizinhas de sua mãe quando ele desceu do ônibus. Quase foi arrastada pela família e amigos da família até um pequeno carro antigo, propriedade de seu pai há muitos anos, estacionado ao lado da pequena Rodoviária onde os ônibus faziam suas paradas obrigatórias. Chegando à casa de sua família, Clarissa sentiu o cheiro familiar de aconchego e carinho que dali vinha. Como era bom sentir esta alegria. Tantos anos que não vinha ver seus pais, que havia esquecido do quanto era bom ter alguém como eles ao lado. - E aí minha filha! Sentiu saudades? – perguntou o pai olhando para o semblante feliz da filha. - Nossa! Nem imagina quanto! - Venha trazer suas coisas, seu quarto continua o mesmo e do jeito que deixou! E sua mãe lhe puxava pela mão para que fosse ver como era verdade o que dizia. Seu quarto era azul bem claro com faixas brancas e douradas riscando horizontalmente as paredes. Fora ela mesma que fizera a decoração ao completar 15 anos. Ainda estava lá do mesmo jeito, nem desbotara.

Jogou sua valise ao lado do armário e estirou-se na cama como fazia quando

Jogou sua valise ao lado do armário e estirou-se na cama como fazia quando chegava do colégio antigamente. Como era bom!!! - Vou deixá-la descansar enquanto preparo um bom café para você. Sua mãe saiu e ela descansou a cabeça no macio travesseiro cor de rosa e dormiu imediatamente. Sonhou que era criança e que pescava no rio que banhava a cidade, seu pai a ajudava lançar o anzol sobre as águas claras. De repente o rio virou mar, e o barco onde estava com o pai era velho e sujo de sangue, começou a gritar. Acordou assustada com sua mãe ao lado lhe passando a mão pelos cabelos. - Estava tendo um sonho ruim minha filha? - Não mamãe! Sonhava que estava pescando com papai no rio. - Parecia que você estava com alguma dor, sua fisionomia se contraia como se fosse isso. Venha, o café está pronto. Na grande mesa da copa estava o café que ela havia esquecido que existia. Um grande bule de porcelana, uma leiteira do mesmo tamanho com leite fervendo, açucareiro, manteigueiras, potes de geléia, pão fresquinho feito em casa. Ainda tinha bolinhos de chuva recheados com goiabada, biscoitos caseiros e uma travessa cheia de frutas da época. - Puxa mamãe! Havia esquecido como seu café da manhã era tão gostoso. Estou com muita fome! Sentou-se ao lado da mãe em frente a seu pai, que a olhava com os olhos meigos cheios de saudade. Seu coração ficou pequeno sabendo o quanto os fizera sofrer não vindo vê-los mais vezes nesses anos todos. Quantos anos ficou longe mesmo? Como se seu pai ouvisse seu pensamento falou: - Quase nove anos que você não vinha aqui! Já não tínhamos mais esperanças de que viesse antes de morrermos. E os olhos meigos do pai se encheram de lágrimas. Clarissa com a boca cheia com um bolinho de chuva quase se engasgou. Levantou e foi até seu pai e lhe deu um grande e afetuoso abraço.

- Papai! Não fale assim! Vocês não deixaram de ser importantes para mim, só

- Papai! Não fale assim! Vocês não deixaram de ser importantes para mim, só porque meus afazeres não me deram tempo de vir vê-los. Mas agora, se quiserem, posso ficar muito tempo. Parei de lecionar, me dei umas férias longas por minha conta. - E Maurício? – perguntou a mãe. Lembrou que não havia contado a eles sobre a história inventada por ela sobre o marido. - Após esse café maravilhoso, vou contar-lhes em detalhes o que vem acontecendo em minha vida ultimamente. Voltou a sentar-se, porque estava realmente com fome. Desde aquela noite fatídica que ela não fazia refeições assim, saudáveis e abundantes. Tinha emagrecido muito e algumas vezes sentia-se muito fraca. As dores voltavam de vez em quando, tanto no peito como a cabeça. E assim perdia todo e qualquer apetite. Mas agora estava bem, sem dores, com o coração aquecido pelo amor dos pais. Após o lauto café da manhã, Clarissa chamou os pais para o exterior da casa, onde havia uma grande e gostosa varanda com redes e cadeiras com almofadas coloridas. Então falou para os pais a história inventada por ela para o desaparecimento de Maurício. Ela não sabia onde estava, e ninguém mais o sabia. Contou que a mãe dele colocou uns detetives a sua procura, mas nenhum resultado até agora.

Quinze dias que Clarissa aproveitava a vida fácil e gostosa da casa de seus

Quinze dias que Clarissa aproveitava a vida fácil e gostosa da casa de seus pais. Hoje ela sairia após o café da manhã, com uns amigos de infância que a convidaram para um pic-nic à beira do rio, que não era longe. O local escolhido ela conhecia desde criança, era um sítio onde o rio fazia uma curva, e nas margens tinha uma grande quantidade de árvores frondosas, onde as pessoas costumavam conservar limpo para fazer o que eles iriam fazer hoje. Levantou mais cedo que os dias anteriores. Da porta entreaberta vinha um cheiro bom de café coado, bolo assado, pão fresquinho. Vestiu uma calça jeans bem velha, uma blusa de algodão fresquinha e um tênis confortável. Puxou os cabelos em rabo-de-cavalo e amarrou uma fita em cima da travessa que o prendeu. Saiu do quarto feliz, foi para a cozinha ver se a mãe precisava de ajuda. - Não preciso de ajuda querida! Maria está fazendo as coisas, estou só arrumando a mesa. Levantou cedo hoje! - Sim! Vou sair com uns amigos para um pic-nic. A senhora lembra do Marcos, da Virginia e sua irmã Luiza, do Nandinho e seu irmão Cláudio? A mãe riu: - Sim! Claro que lembro! Todos eles após concluírem os estudos na capital voltaram para ajudar os pais com a terra. - É! Felizes eles por poderem fazer isso! Esta pequena cidade, embora não tenha mar, tem a beleza da Paz e do carinho das pessoas. Coisas que por lá a gente não tem. A mãe olhou para a linda moça que era sua filha, e viu no verde daquele olhar a tristeza profunda que neles ia. - Sabe filha! Tudo o que acontece na vida tem a sua razão de ser! Não fique triste! Pobre mamãe! Pensou Clarissa, se ela soubesse no que me tornei! Saiu da mesa com o estômago cheio mas o coração novamente com a estaca enfiada e sangrando! Não podia deixar que a dor de cabeça chegasse, aqui não! Queria aproveitar a vida boa daquela gente simples e amistosa.

Correu para o banheiro, escovou os dentes vigorosamente como para tirar o peso da

Correu para o banheiro, escovou os dentes vigorosamente como para tirar o peso da alma. Queria viver! Precisava viver! Ouviu alguém tocar a campainha da porta da frente. Devia ser o primeiro amigo chegando para buscá-la. Foi para o quarto dar um último retoque na aparência. Sua mãe chegou com um telegrama na mão e disse: - Espero que sejam boas notícias. Enquanto Clarissa abria o pequeno envelope do telegrama, sua mãe encostou-se no batente da porta e esperou que ela lesse. Clarissa mudou a fisionomia. De alegre e feliz para uma expressão extremamente preocupada. O telegrama era de Neuza sua amiga, dizia apenas: "Venha urgente. Sua presença necessária. " O que deveria pedir sua presença tão urgente? Estava ficando com receio e não sabia do quê! Porque ela não telefonara? Antes de sair deixara o telefone dos pais caso ela precisasse ligar por algum motivo. Enviar um telegrama? Coisa mais antiga!

- E daí? – sua mãe perguntou curiosa. - Nada importante, apenas uma professora

- E daí? – sua mãe perguntou curiosa. - Nada importante, apenas uma professora minha amiga diz para eu voltar porque precisam de mim lá com urgência. - E por que ela não telefonou? - Também me fiz essa pergunta agora mesmo! Mas acho que não é nada tão importante que não possa ir com meus amigos para esse pic-nic. E falando levantou-se para ir atender a porta. Eram seus amigos, sorridentes em suas calças jeans, camisetas surradas e botas de gente da roça. Como era bom vê-los! - Nossa como você está linda! - Obrigado pela gentileza! Quem a chamara de linda era Nandinho. Ela o olhou e viu que ele se tornara um belo homem. Alto, grandes e brilhantes olhos azuis, cabelos louro-avermelhado encaracolados encimando um rosto bonito e bem feito. Tinha um corpo de atleta conservado pela luta diária nas roças de seu pai. Era ele que cuidava de tudo, seu pai havia informado.

- Vamos então? - Chamou Virgínia apressando os amigos. Dois carros saíram em direção

- Vamos então? - Chamou Virgínia apressando os amigos. Dois carros saíram em direção ao rio com um bando de jovens alegres por estarem ali, simplesmente por existirem. No local do pic-nic puseram-se a tirar as folhas, estender as toalhas, armar as redes nas árvores, tirar dos porta-malas as cestas com as iguarias. Marcos precavido quanto às formigas, trouxera uma mesa de montar na caçamba de sua camioneta. Triunfante colocoua embaixo de uma frondosíssima árvore dizendo: - Se não fosse o Marquinhos aqui, as guloseimas da mãe de Virgínia seriam logo devoradas pelas amigas formiguinhas moradoras perpétuas desse local, não que as culpe, as coisas que a mãe dela faz são de dar água na boca! - Não seja ingrato! Ajudei mamãe fazer tudo! Ficamos ontem até muito tarde para estar tudo muito fresquinho hoje.

Marcos foi até onde estava tentando tirar a enorme cesta do porta-malas do carro

Marcos foi até onde estava tentando tirar a enorme cesta do porta-malas do carro de Nandinho, e lhe deu um grande beijo na boca. Clarissa não havia percebido que os dois estavam namorando. Olhando para o lado viu Cláudio e Luiza abraçados enquanto carregavam a outra cesta com bebidas e gelo. Rindo e aos beijos os dois traziam a custo a cesta pesada. Bem! Quem diria? Ainda bem que Nandinho não trouxera namorada, senão com quem conversaria? - Pensativa Clarissa? – perguntou Nandinho. - Olhando a festa de meus amigos ali! Como são felizes! E você tem namorada? Nandinho soltou uma grande gargalhada antes de responder. - Até você? Aqui na cidade não tem nenhum vivente, que não tenha me feito essa pergunta pelo menos dez vezes nos últimos anos depois que voltei. Mas respondo: Não! Não tenho e não quero ter por enquanto. - Desculpe Nandinho! Foi involuntário, mas não deixa de ser descortês, confesso!

- Nem ligue! Já estou acostumado! – e riu com gosto novamente. No entanto

- Nem ligue! Já estou acostumado! – e riu com gosto novamente. No entanto durante o dia todo Nandinho passou ao lado de Clarissa, fazendo dengos, dizendo elogios, aproximando-se a todo instante muito mais perto do que seria realmente necessário. Há certa hora Marcos falou: - Clarissa como você atura um cara chato desse jeito? Acho que é por isso que ele não tem namorada. É muito grudento! - Para ser sincera gosto de atenção! E não o acho chato de maneira alguma! Nandinho levantando-se da grama onde estava sentado ao lado da rede que Clarissa balançava molemente, aproximou-se e lhe um grande beijo na face e dise: - Estão vendo? Mulheres cultas e finas gostam de carinho! Só as matutas é que acham que é frescura esse tipo de tratamento. E demais a mais, sou assim, foi assim que me fizeram e não vou mudar. E correu como um moleque até a beira do rio e jogou uma pedrinha no remanso das águas, ficando a olhar as ondas que seu gesto provocou. Sentou-se na margem e ficou absorto com o olhar no infinito.

Virgínia falou baixinho para Clarissa: - Ele teve uma grande desilusão com uma garota

Virgínia falou baixinho para Clarissa: - Ele teve uma grande desilusão com uma garota quando estava no último ano da faculdade. Hoje é arredio com qualquer mulher que se aproxime com intenção de namorar. Nem ligue! Ainda bem que você é casada, e acho que é por isso que não a considera perigosa tratando-a bem. - Também acho! – falou Marcos – Tenho pena dele, está sempre muito só, trabalha feito um mouro nas terras do pai. Acho que é para esquecer. Clarissa olhou para o belo rapaz na beira do rio e foi a seu encontro. Se ele soubesse quem ela era realmente, nunca a trataria com tanto carinho. - E aí Nandinho? Temos algum programa para hoje à noite? Gostaria de sair para dançar ou algo assim.

- Mesmo? Vamos providenciar então. Não é sempre que uma gentil mestra da grande

- Mesmo? Vamos providenciar então. Não é sempre que uma gentil mestra da grande universidade vem e quer se divertir com os roceiros daqui. - Que vocês dois estão cochichando aí? – perguntou Cláudio. - Estamos marcando uma saída para hoje à noite. Que tal irmos dançar? - Muito boa idéia! Podemos ir até a cidade vizinha onde tem um restaurante com música ambiente. Que acham? – falou Luiza abraçando o namorado. - Então precisamos ir andando. Já viram que horas são? E todos se levantaram, juntaram as cestas, toalhas, garrafas vazias de refrigerantes e água que estavam espalhadas aqui e ali. Deixaram o lugar limpo e sem lixo. Todos na cidade cuidavam para que o local permanecesse sempre impecável par o próximo usuário. Chegando na casa dos pais Clarissa foi recebida pela mãe: - Filha! Sua amiga Neuza ligou e pediu para você retornar assim que chegasse. - Mesmo? Vou tomar um banho primeiro. Depois ligo, ok? - Certo filha! Foi bom o pic-nic? - Nossa mãezinha! Foi excelente! Eles são maravilhosos. E a propósito, vamos sair para jantar e dançar. Vamos nos divertir mamãe! E falando Clarissa abraçou a mãe pela cintura e rodopiava com ela como se fosse uma dança maluca. Após o banho Clarissa demorou a encontrar algo que a satisfizesse para sair. Não trouxera muita roupa, que tola fora! Mas após muito escolher olhou para o espelho e achou que estava bom. O telefone tocou e era Nandinho avisando que já estava chegando para pegá-la. Beijou a mãe no rosto e saiu para a varanda aguardar o amigo.

No dia seguinte Clarissa acordou tarde. Chegara de madrugada com os amigos. Divertiram-se muito!

No dia seguinte Clarissa acordou tarde. Chegara de madrugada com os amigos. Divertiram-se muito! Nandinho revelou-se um perfeito cavalheiro e par delicioso para uma noitada alegre. Beberam uns drinks preparados por uma espanhola que era uma delícia. Não acostumada a bebidas de álcool Clarissa ficou alegre logo no primeiro. Tomou três deles! Deveria ter ficado muito estranha, nunca se vira bêbada, nem Maurício bebia. Foi uma experiência singular. Beijou Nandinho na boca com uma paixão que só sentiu com o marido. Aliás, o marido fora o único que ela beijara com paixão. Os demais foi profissionalmente, só para matar. Levantou da cama e foi para o banheiro, precisava recompor-se antes de estar diante dos pais. Estava com uma fisionomia de quem não tomava banho fazia um mês! Por que será que a bebida deixa as pessoas feias no dia seguinte? Já vira muitas pessoas que bebiam e no dia seguinte pareciam outra. Que química formaria no organismo para ocasionar isso? - Clarissa! Sua amiga Neuza ao telefone! – e sua mãe juntava as roupas espalhadas pelo quarto e juntava no braço para levá-las à lavanderia.

- Diga que ligo para ela daqui a pouco. – falou Clarissa debaixo da

- Diga que ligo para ela daqui a pouco. – falou Clarissa debaixo da ducha. - Está bem! – e a mãe saiu rápido rumo ao telefone. Antes de ir tomar seu café da manhã Clarissa ligou para Neuza. - Alô Neuza? - Oi Clarissa! Até que enfim menina. - Recebi seu telegrama. - Que telegrama? Não enviei telegrama nenhum. - Mas eu recebi um assinado por você. - Assinado? - Quer dizer, dizia ser seu! - Mas não enviei. Olha, ontem dois policiais estiveram aqui em casa e na casa da Valéria fazendo perguntas sobre você e o Maurício. Foi por isso que liguei.

vem? - E o que eles queriam? - Fizeram um monte de perguntas, prefiro

vem? - E o que eles queriam? - Fizeram um monte de perguntas, prefiro dizer a você pessoalmente. Para Valéria foi a mesma coisa. Quando você - Ainda não sei! Acho que esses policiais foram os mesmos que foram a minha casa alguns dias atrás. Parece que a mãe de Maurício está preocupada com ele, e quer saber onde ele está. - Mas tem mais amiga. Tem mais. Precisa vir logo para conversarmos. Assim por telefone não podemos esmiuçar. - Está bem! Vou ver que posso fazer! Avisarei assim que chegar. Até logo amiga! - Até logo! Mas venha hein? - Ok! Irei! O que será esse "muito mais" que Neuza não quis falar? Enquanto pensava no telefonema Clarissa entrou para o café da manhã. Seus pais a esperavam pacientemente. - Bom dia papai! Tudo bem mamãe? - Tudo bem filha! O que sua amiga tanto queria? Ontem ela ligou três vezes. - Assunto da faculdade. Ela pertence ao conselho e eles pediram para ela ligar. Nada de mais. - Pensei que fosse muito importante, pelo tom de voz dela! Parecia preocupada. - Neuza é assim. Qualquer coisa a deixa em polvorosa, enquanto não cumpre com a obrigação imposta a ela, não sossega. Fique tranqüila. Mas parece que vou ter de ir lá para resolver alguns detalhes sem importância acho eu, embora Neuza pense diferente. - Sei como são essas pessoas – falou o pai – não descansam enquanto não fazem o que devem fazer. - Pois é! Mas papai, que o senhor acha do Nandinho? - Filha! Ele é bom rapaz, de boa índole, família muito boa. Parece que teve um problema com uma mulher na capital enquanto esteve lá, e não deu muito certo. Desde então não teve mais namoradas. Mas veja que interesse é esse agora por ele? - Nenhum em especial. Ele foi muito gentil ontem. Gostei de seu jeito. - Não vá fazer besteira filha. Maurício pode voltar e você se arrepender. Clarissa viu o corpo de Maurício descendo as águas do mar, e a dor no peito começou fininha. - Não papai, não vou fazer nenhuma besteira. Porque acho que Nandinho não merece. - Ainda bem!

Dois dias depois Clarissa retornou à capital sem se despedir dos amigos de infância.

Dois dias depois Clarissa retornou à capital sem se despedir dos amigos de infância. Tomou um ônibus bem cedo, não queria platéia na sua partida. Estava triste e apreensiva. Neuza ligara mais duas vezes deixando-a preocupada. O que poderia ser de tão grave? Quando chegou ao apartamento ligou para ela. - Estou em casa. Quando quiser pode vir. Entrou no quarto e foi tomar um banho. Nem havia se enxugado e o interfone tocou. Era Neuza! - Puxa! Deve ser muito grave mesmo para você vir assim tão depressa. - E é amiga. É muito grave! Neuza sentou-se no sofá próximo à janela e começou a falar: - Você conheceu Ruth na festa daquele dia? - Ruth? Sim. Ela se apresentou de uma maneira pouco amigável. - Então sabe quem era uma das amantes de seu marido! - É! - Ela é professora de direito, promotora na vara criminal entre outras coisas. Solteirona, mal amada, não sei o que Maurício achava nela. Mas, vá lá, ela é realmente bonita. - Sim é! - Então! Ela está armando um fusuê danado! Procurou a mãe de Maurício e colocou um monte de caraminholas na cabeça dela, e está instigando essa investigação de próprio punho. Acho que os policiais estão fazendo essa confusão toda porque a mal amada não os deixa em paz. Mas, para encurtar a história, estamos todos sendo argüidos para serem os nossos depoimentos colocados nos autos. Nem o diretor da faculdade passou em branco. Ainda bem que todos falam a mesma língua. Maurício era um devasso nessa questão de mulheres. E a tal Ruth não quer aceitar que ele fugiu com alguma de suas amantes, pois se considerava única e com direitos, porque, segundo ela, ele estava abandonando você para ficar com ela. Arre! Não se enxerga!

Enquanto Neuza falava Clarissa via o marido caído ali perto da pia, e depois

Enquanto Neuza falava Clarissa via o marido caído ali perto da pia, e depois descia pelas águas límpidas do mar. Por que ele não deixou ela enfiar a faca no próprio peito? Por que virou em sua direção? Não lembrava muito bem! Ela o amava tanto! Aquela pia fora ele que escolhera. O granito branco reluzente refletia a luz que vinha da janela. O piso da sala estava limpo e brilhante. Ela lavara bem, estava bonito! Ruth? - Clarissa está me ouvindo? - Sim Neuza! Continue. - Se lhe faz mal eu paro. - Não! Continue, é interessante ouvir falar de meu marido com sua amante interessada em saber onde ele está. Eu também gostaria de saber. E não era mentira! Gostaria de saber se os tubarões o comeram, ou um cardume de piranhas, quem sabe? E os outros? - Amiga! Vou parar por aqui! Sua fisionomia está transfigurada. Mas olhe. O que eu quero mesmo é avisá-la que você vai ser interrogada novamente, e a maluca quer estar presente no interrogatório. Você vai me prometer que me avisará quando isso for, quero ir junto, ok? - Certo! Avisarei! - Vou ficar aqui um pouco até seu rosto voltar ao normal. - Não precisa Neuza! Só estou cansada, mal pude tomar meu banho, como vê ainda estou com a toalha. - Desculpe querida amiga! Na ânsia de avisá-la nem previ que estaria cansada da viagem. Volto amanhã para conversarmos mais, ok? - Está bem! Esperarei. Quando Neuza saiu Clarissa voltou para o quarto. No armário junto com suas roupas ainda estavam as roupas de Maurício. Procurou uma camisa dele e vestiu. Era uma camisa vermelha que o deixava tão lindo quando a vestia! Por baixo estava nua. A dor no peito estava alastrando para o braço. A dor de cabeça estava aumentando gradativamente. Foi até a cozinha e falou ao interfone para o porteiro enviar alguém para pegar uma chave, queria que fosse entregue a sua amiga que viria amanhã. O nome era Neuza.

cheia. - Tudo bem Dona Clarissa. A senhora quer que envie sua correspondência? A

cheia. - Tudo bem Dona Clarissa. A senhora quer que envie sua correspondência? A caixa está muito - Está bem! Mande! Depois de alguns minutos um dos rapazes da limpeza bateu na porta. Clarissa abriu e pegou o enorme pacote de correspondência. Não se lembrava desde quando não olhava a correspondência. Devia haver contas a serem pagas, olharia depois. Entregou a chave com um bilhete para Neuza. Já era noite. Foi até a janela e olhou para o céu, onde uma lua nova com um risco de crescente estava rodeada de pequenas estrelas. Falou: - Minha querida Lua e minhas lindas estrelas. Vão até onde está meu amor e lhe digam que o amo muito, que não sei viver sem ele. Que gostaria muito que ele estivesse aqui comigo. Ele entenderá. A dor no peito que já se espalhara pelo braço, agora estava mais forte que antes. Quase tão forte quanto no dia em que a faca entrou no peito de seu amor. Boa noite Lua. Boa noite estrelas. Entrou no quarto deitou e dormiu.

No dia seguinte Neuza chegou cedo. Estava preocupada com a amiga. No dia anterior

No dia seguinte Neuza chegou cedo. Estava preocupada com a amiga. No dia anterior não apresentava uma boa fisionomia. Quando chegou na portaria estranhou que o porteiro lhe entregasse a chave com um bilhete. Abriu o papel e leu: "Amiga. Não estou me sentindo muito bem. Não sei a que horas você chegará. Talvez eu ainda esteja deitada. Pode entrar. A casa é sua. " Neuza abriu a porta com cautela, se a amiga estivesse dormindo ela a deixaria dormir até acordar espontaneamente. Não a acordaria. Devagar foi até a porta do quarto e estacou assustada. Clarissa jazia na cama com uma imensa faca de cozinha enterrada no peito. O sangue estava por toda a cama. A camisa masculina vermelha que ela vestia estava com poças coaguladas nas dobras. Quem fizera aquilo? Se a chave estava na portaria com um bilhete? Correu ao telefone e chamou a polícia. Minutos depois o apartamento estava cheio de gente. Policiais, vizinhos e amigos a quem Neuza ligou avisando. Alguns choravam pelo espetáculo aterrador que viam. Outros falavam que era impossível que uma mulher tão linda tivesse se suicidado. Só podia ser crime. Seria o marido? Alguém que a odiasse? Neuza ouvindo as conversas começou a formar uma idéia, quem sabe Ruth enciumada? Como entraria? Claro! Com a desculpa da investigação poderia ter convencido Clarissa a abrir a porta. Após matá-la desceu e deixou a chave com o porteiro e colocou um bilhete junto para ela. Não! Não fechava! A letra do bilhete era de Clarissa! Mas por que ela se mataria? Quando diminuiu a aglomeração a pedido dos policiais, Neuza pode conversar. - O que os senhores sugerem que foi? - Anda não podemos precisar. Só após as investigações. Mas ao que tudo indica foi suicídio. Ela tem parentes?

- Sim. Acabara de chegar da casa dos pais no interior. - Precisamos do

- Sim. Acabara de chegar da casa dos pais no interior. - Precisamos do endereço. - Eu tenho o telefone, serve? - Sim. Neuza procurou na agenda e passou o número aos policiais. Não queria nem pensar na dor dos pais ao saber da tragédia. E Maurício viria quando soubesse? Neuza olhou para o grande maço de papéis que estavam na poltrona, pegou e viu que era correspondência. Todas ainda estavam fechadas. Clarissa não as abrira. Decidiu que levaria para sua casa e veria se algo era de urgência. Ou deveria passar para os pais dela? Depois de todos os trâmites legais o apartamento foi lacrado, e só os pais dela e de Maurício poderiam entrar. Ou o próprio Maurício se aparecesse. Ouvira por alto um dos policiais falando que poderia ter sido o marido. Quem sabe? Quando chegou a seu apartamento Neuza jogou os papéis em cima da mesa e foi para a cozinha. Pensou que fora muito forte ao ver a amiga naquele estado, e nem um enjôo tivera. E agora estava com fome. Era forte mesmo! Após um lanche reforçado foi ver de que se t ratava tanto papel de Clarissa. Eram contas de condomínio, extratos de cartões de créditos, contas de energia, de telefones fixos e celulares. Propagandas de viagem, uma revista de esporte, jornais, e uma grande quantidade de panfletos também de viagens. Parecia que Clarissa queria viajar. Ou seria Maurício? Um envelope branco com timbre da polícia lhe chamou a atenção. Deveria abrir? Era da polícia. Neuza ficou um tempão com aquele envelope nas mãos. Virava e olhava. Resolveu abrir. Era uma intimação para o comparecimento urgente de Clarissa à delegacia. Precisava prestar depoimento. Estava marcado para quinze dias antes. Clarissa estava na casa dos pais, por isso não vira e não comparecera. Podia ver o dedo de Ruth ali.

Lembrou então da causadora de toda aquela confusão. Quer dizer, de uma das causadoras.

Lembrou então da causadora de toda aquela confusão. Quer dizer, de uma das causadoras. O que estaria pensando agora aquela víbora? Guardou em uma sacola grande toda aquela papelada, entregaria aos pais de Clarissa, menos a intimação. Eles não precisariam saber da pressão que a filha estava sofrendo por parte de uma das amantes do marido. Mas a polícia deveria saber. Neuza desconfiava que Ruth teria algumas explicações a dar. E não se enganou. Usando do bilhete que Clarissa deixara na portaria, ela entrou e a matou. Mais tarde confessou o crime. Matara por ciúmes e inveja. Na janela da sala, encostados no parapeito estavam Clarissa e Maurício. Olhavam para o seu belo apartamento, tão caprichadamente decorado pelos dois. Viraram-se para o jardim onde as crianças brincavam, indiferentes a tudo. - Podemos ter um filho agora meu amor? – perguntou Clarissa. - Sim querida! Quantos quiser! E com a luz do sol brilhando nos longos e sedosos cabelos de Clarissa, os dois alçaram vôo para o infinito azul, rumo à felicidade interrompida por um breve período!