Fr Clodovis M Boff OSM IMACULADA CONCEIO D
Fr. Clodovis M. Boff, OSM IMACULADA CONCEIÇÃO
D A D O S Da F É
1. MAGISTÉRIO Em 1854, na bula Ineffabilis Deus o papa Pio IX declarou como infalível a doutrina da Imaculada conceição. Eis os termos solenes da definição dogmática, onde cada linha foi pesada e tem, pois, seu sentido:
“Em honra da Santa e indivisível Trindade, para decoro e ornamento da Virgem Mãe de Deus, para a exaltação da fé católica e para o incremento da Religião cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos santos Apóstolos Pedro e Paulo e nossa, DECLARAMOS, PRONUNCIAMOS E DEFINIMOS como doutrina revelada por Deus, o seguinte:
A Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua concepção, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do Gênero humano, FOI PRESERVADA IMUNE DE TODA MANCHA DE PECADO ORIGINAL. Essa doutrina, pois, deve ser crida firmemente e inviolavelmente por todos os fiéis.
Portanto, quem presumir deliberadamente (que Deus não o permita!) pensar em seu coração uma opinião contrária a essa definição, conheça e saiba que se condena a si mesmo por seu próprio juízo, que fez naufrágio na fé, que se separou da unidade da Igreja e que incorreu automaticamente nas penas estabelecidas pelo Direito. . .
Anos depois, em 1857, Pio IX, achando-se em Ímola, onde fora bispo, revelou à superiora do Orfanato que ele havia fundado, as impressões que sentiu no momento solene em que pronunciou a fórmula dogmática:
“Quando comecei a publicar o Decreto dogmático, sentia minha voz impotente para se fazer ouvir pela imensa multidão (50. 000 pessoas) que se apinhava na Basílica Vaticana. Mas, quando cheguei à fórmula da definição, Deus deu à voz de Seu Vigário tal força e tal vigor sobrenatural, que fez ressoar toda a Basílica.
E eu fiquei tão impressionado por tal socorro divino que fui obrigado a suspender, por um instante, a palavra para dar livre desafogo às minhas lágrimas (ap. D. BERTETTO, Il Papa dell’Immacolata Pio IX, Ed. Civiltà, Brescia 1972, p. 63.
2. “SENSO DOS FIÉIS” Esta é a fonte principal para o dogma da Imaculada. Quer dizer: o Povo de Deus, meditando e degustando a Palavra de Deus, compreendeu que a Mãe de Jesus tinha sido, desde sempre, toda-pura, sem mancha alguma. De resto, Pio IX, antes de declarar o dogma, sondou as bases católicas para se certificar do “consenso dos fiéis” e nele se apoiar a respeito desta questão.
2. 1 – Santos Padres: Este mesmo sentimento, mais vivido que falado pelo Povo, o qual se indigna quando ouve dizer que haveria algum pecado na Santíssima Mãe de Deus, ganha expressão na voz dos Santos Padres. Santo Agostinho declara, decidido: “Quando se trata de pecado em Maria, pela honra devida ao Senhor, não quero nem discutir”. É impossível “entregar Maria ao Diabo”, sequer por um momento mínimo.
- Dionísio o Cartuxo, citado por Pio IX, afirma: “É horroroso para nós dizer que esta Mulher, que iria esmagar a cabeça da Serpente, tenha sido alguma vez porela esmagada”. - Assim se exprimiu uma convertida do início do séc. XX, Miss B. A. Baker: “Depois que descobri Cristo como Deus, a mera suposição de uma falta em Maria me parecia infligir a Ele um ultrage”.
2. 2 - O Magistério também se faz porta-voz do “senso dos fiéis”, invocando, como argumento decisivo para a definição dogmática, o que a Ineffabilis Deus chama “senso da Igreja” e “conspiração dos Pastores e fiéis”.
O Concílio de Basileia (em 1439, quando já era infelizmente ilegítimo) tinha aprovado a doutrina da Imaculada, apelando para o “sentimento popular”, que declarou estar “em harmonia com a fé católica”. Por sua parte, o Concílio de Trento, embora não fale do pecado original em Maria, afirma o “privilégio especial” de sua isenção em relação a todo pecado atual (DH 1573).
2. 3 - Outras expressões do “senso dos fiéis”. - O Proto-evangelho de Tiago. Este conta como Ana concebeu Maria, a saber: na ausência de Joaquim, para mostrar, assim que Ela foi concebida de modo milagroso e puro.
- A festa da Imaculada. Era celebrada pelo Povo desde o séc. VIII no Oriente, e desde o séc. IX no Ocidente. No começo chamou-se festa da “Conceição de Ana” (concepção ativa), depois, no Ocidente, passou a chamar-se festa da “Conceição da B. V. Maria” (concepção passiva).
- O “voto de sangue”. Para defender a doutrina da Imaculada, estava-se disposto a derramar o próprio sangue. Esse voto começou no séc. XIV e atingiu seu cume no séc. XVII. Tal voto foi feito por Universidades (Paris, Oxford, Cambridge, Viena, Salamanca, Coimbra, Quito, Lima), por Ordens religiosas (Jesuítas, Franciscanos), por Cidades (Lima, Caracas, Trujillo), e até por Monarquias (Espanha, Portugal).
- As Aparições de N. Sra. das Graças (1831 -32) e de N. Sra. de Lourdes (1857). A primeira preparou a fé no dogma da Imaculada e a segunda a confirmou; - A abundante iconografia do Povo e dos artistas sobre a Imaculada. Representamna, ora esmagando a cabeça do Dragão, ora em meio a rosas e lírios, ora como a Tota pulchra, ou simplesmente como Nossa Senhora das Graças ou de Lourdes.
3. Tradição dos Santos Padres Meditando as Escrituras, os Padres descobrem o mistério da Imaculada, especialmente em duas passagens: 1) “Ela mesma te esmagará” (Gn 3, 15: Proto-evangelho), 2) “Eis aqui a Serva do Senhor” (Lc 1, 38). Nesta última expressão, os Padres veem Maria como a Nova Eva, que, ao contrário da primeira, sempre disse sim a Deus.
Os Santos Padres exploram algumas figuras do VT e vêem nelas evocações do mistério da Imaculada Conceição: - a Esposa dos Cânticos: Ela é “sem mancha” (4, 7), “torre inexpugnável” (4, 4), “jardim fechado e fonte selada” (4, 12), “bela como a lua, brilhante como o sol, terrível como um exército em ordem de batalha” (6, 10), a Princesa-noiva, que ascende apoiada em seu Esposo real (8, 5; cf. também Sl 44);
- a Tenda do Encontro com Deus (Ex 31, 1 -11), a Morada divina (Shekinah: cf. Lc 1, 35), o Templo da Glória (1 Rs 8); - a Arca da Aliança (Ex 25, 10; 1 Sm 46; 2 Sm 6; Sl 131; Ap 11, 19); - outras figuras: a Escada de Jacó (Gn 28, 12), a Sarça ardente (Ex 3, 2 -3), a Sabedoria (Sb 8; Sir 24, 14 -31), etc.
Note-se que alguns Doutores (teólogos) só mais tarde entenderam aquilo que o “sentimento espiritual” do Povo tinha cedo captado. Fixados na idéia da universalidade do Pecado e da Redenção, se opuseram à crença na Imaculada São Bernardo, Pedro Lombardo, S. Alberto Magno, S. Tomás, S. Boaventura, e outros. Concediam apenas uma “purificação” da Virgem no seio materno, “logo após a sua concepção”, mas esta ter-se-ia dado no pecado.
Os que mais contradiziam a crença na Imaculada eram os teólogos Dominicanos, enquanto que os maiores defensores eram os Franciscanos, talvez porque mais próximos do Povo e de seu “senso de fé”. As disputas entre as duas correntes eram tão ardorosas que chegavam não raro às vias de fato, obrigando até o poder público a intervir.
Os Islâmicos têm Maria em altíssimo conceito, acreditam que Ela nasceu sem pecado. Dizem que todo recémnascido é mordido nas costas pelo Maldito, por isso chora. Essa regra sofreu apenas duas exceções: Jesus e Maria. Nem mesmo Maomé teria sido isento dela.
- A abundante iconografia do Povo e dos artistas sobre a Imaculada. Representam-na ora esmagando a cabeça do Dragão, ora em meio a rosas e lírios, ora como a Tota pulchra, ou simplesmente como Nossa Senhora das Graças ou de Lourdes.
4. Bases bíblicas Além das referidas acima, recordamos: 4. 1 - “Cheia de graça” (Lc 1, 28). A expressão kecharitōmenē é única em toda a Bíblia. Ela surpreendeu a própria Virgem (Lc 1, 29). Significa plenamente a-graci-ada, repleta de graça. Maria devia, portanto, ser cheia de graça “desde o primeiro instante de sua concepção”.
4. 2 - “O Poderoso fez para mim maravilhas (gr. megála; hebr. ghedolot)”: Lc 1, 49. O dogma da Imaculada é uma das “maravilhas” que Deus realizou em Maria.
EXPLICAÇÃO TEOLÓGICA DA IMACULADA
1 - O privilégio da Conceição imaculada está finalizado a Cristo Às razões trazidas pela definição dogmática da Ineffabilis Deus, é preciso acrescentar esta: a graça da Imaculada está a serviço da Encarnação redentora de Jesus.
É o que diz a liturgia da missa da festa: “Ó Deus, que preparastes uma digna habitação para vosso Filho pela imaculada conceição da Virgem Maria” (Oração); “Puríssima devia ser Aquela que geraria o Cordeiro sem mancha” (Prefácio). Mais: este dogma está finalizado à nossa Salvação. Ele também se cumpre “por nós, homens e pela nossa salvação”.
3 - Imaculada: Manifesto em favor da graça original A doutrina em foco diz que a Graça é anterior ao Pecado e mais forte do que ele. Na Imaculada, a Graça triunfou totalmente, e isso “desde o começo” de sua existência. A Toda-pura surge como a nova Eva, a Mulher do Paraíso, a “Novíssima Criatura”. “Ela vem mais cedo que o pecado” (G. BERNANOS).
De fato, a Virgem imaculada é o fruto primeiro e melhor da potência redentora de Cri. Santo “Ela foi redimida de modo mais sublime”, isto é, preventivamente e radicalmente (LG 53). É precisamente porque o Povo fiel está convencido do poder soteriológico de Cristo, atuando até à raiz do pecado e mesmo antes dele, que acredita na Conceição imaculada de Maria.
A idéia de “redenção preventiva” ou “preredenção” é do franciscano Duns Scotus, o grande advogado do dogma da Imaculada. Dizia que o perfeitíssimo Reden-tor devia remir de modo perfeitíssimo a Virgem perfeitíssima. Scotus usou um argumento já elaborado por discípulos de Santo Anselmo (� 1109), como Eadmero: (Deus) “pôde, convinha, fez” (potuit, decuit, ergo fecit).
APLICAÇÕES DO DOGMA DA IMACULADA
1. Confiança inabalável na força radical da Graça redentora A Graça do Redentor pode sanar nossa vida pela raiz. Pode nos tornar “imaculados” (Ef 1, 4: 1 a. leitura da festa da Imaculada). Devolve-nos a “justiça original”. Faz-nos voltar ao Paraíso (cf. Ap 22, 1 -2). Até aí vai a eficácia do perdão de Cristo: ele nos refaz de alto a baixo, nos recria totalmente.
O perdão não fica apenas na reparação. Vai até à re-novação, tornando-nos “novamente novos”. O perdão redentor nos “re-virginiza”, por assim dizer. Certo, o modo de redenção para nós é curativo, enquanto que para a Virgem foi preventivo. Contudo, o efeito final é o mesmo: a aparição da “nova criatura”, o tornar-nos imaculados.
2. Maria imaculada: no centro da luta contra o mal A Toda-santa está associada a uma concepção combativa da fé. Ela inspira a luta contra toda injustiça em nós e no mundo. Pois Maria foi isenta de todo pecado, inclusive da concupiscência, essa inclinação ao fechamento egoísta sobre si mesmo, essa dificuldade de dizer sim ao Amor?
Ela foi a parceira perfeita de Deus. Correspondeu plenamente à sua Graça. Viveu com Ele uma reciprocidade plena. Ela foi a Esposa sempre fiel que “faz a alegria” de seu Esposo divino (cf. Is 62, 5). Tudo isso parece dizer que para a Virgem imaculada “tudo era fácil”. Mas não é verdade. A verdade é que Ela também foi tentada, como Eva no Paraíso, como o próprio Cristo, como cada um de nós.
D’Ela foi profetizado: “Uma espada traspassará tua alma” (Lc 1, 35). Isto é: a Espada da Palavra de Deus atravessará toda a tua vida, fazendo sentir suas exigências extremas. João Paulo II sublinhou o fato que a Mulher nova enfrentou durante toda a sua vida uma luta gigantesca contra o Maligno (cf. RMa 47 e 52).
A grande diferença conosco é que Ela nunca cedeu ao Sedutor, mas foi sempre sim a Deus. Disso tudo podemos concluir que a Imaculada permanece, para nós, como exemplo de lutadora, mas que foi ao mesmo tempo vencedora.
3. Visão realista do Pecado e visão esperançosa da Graça O contexto histórico da declaração do dogma (meados séc. XIX) era o Racionalismo, com sua visão idealista da onipotência da Razão, a qual traria o progresso, a liberdade e a felicidade para todos. Proclamando o dogma da Imaculada, a Igreja ensina, ao contrário, um “realismo otimista”:
3. 1 - “realismo”, porque sabe que subsiste sempre o poder do Pecado e sua imensa influência nos corações e nas estruturas da sociedade, sendo eliminado totalmente apenas no fim dos tempos. Nada, pois, do mito ingênuo e ilusório de um “paraíso na terra”;
3. 2 - “otimista”, porque a Igreja sabe também que existe mais ainda a força da Graça redentora, pela qual podemos resistir vitoriosamente ao Pecado e que pode criar corações e situações melhores que as anteriores. Pois, “onde abundou o Pecado, superabundou a Graça” (Rm 5, 20).
ASSUNÇÃO DE MARIA AO CÉU EM CORPO E ALMA
D A D O S D a F É
1. Magistério Em 1950, Pio XII, com a constituição Munificentissimus Deus, definiu solenemente o dogma da Assunção nestes termos: “Para a glória de Deus onipotente, que na Virgem Maria derramou sua especial benevolência; para honra de Seu Filho, Rei imortal dos séculos e Vencedor do Pecado e da Morte; para a maior glória de sua augusta Mãe;
e para a alegria e exultação de toda a Igreja, pela autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e Nossa, PRONUNCIAMOS, DECLARAMOS E DEFINIMOS ser dogma revelado por Deus que a Imaculada Mãe de Deus, sempre Virgem Maria, terminado o curso de sua vida terrena, FOI ELEVADA À GLÓRIA CELESTE EM CORPO E ALMA.
Por isso, se alguém (que Deus não o permita!) ousasse negar ou pôr em dúvida voluntariamente o que foi por Nós definido, saiba que decaiu da fé divina e católica” (DH 3903 -3904)
Conta-se que, na hora da definição dogmática, o Céu quis dar um sinal de aprovação: a celebração solene na Praça de São Pedro, que se abrira com o céu fechado, no momento da proclamação dogmática, foi subitamente iluminada pelo sol, em todo o seu esplendor.
2. “Senso dos fiéis” O dogma da Assunção é outra “vitória” do “senso dos fiéis”. Pio XII, na constituição Munificentissimus Deus, se refere ao argumento decisivo da chamada “conspiração dos Bispos e dos Fiéis”. Como fizera Pio IX para o dogma da Imaculada, também Pio XII, em 1946, consultou os Bispos de todo mundo para verificar o sentimento do povo fiel a respeito da doutrina da Assunção.
De 1921 a 1940 os católicos do mundo mandaram para Roma quase 6. 500. 000 abaixo-assinados em favor do dogma. De cada 5 dioceses no mundo, 4 tinham feito esse pedido. Notar que o primeiro a fazer uma solicitação desse gênero, quase 200 antes, foi um Servo de Maria, o Pe. Cesário Shguanin (� 1769).
O “sentido dos fiéis”, decisivo para a definição do dogma da Assunção, pode ser verificado ao longo da história pelas seguintes mediações: 2. 1 - Apócrifos assuncionistas Explodiram no Oriente a partir dos anos 500. Falavam do fim da vida de Maria em termos de “dormição” (kóimēsis), de “trânsito”, ou de “descanso”.
O relato, embora contado em muitas e variadas versões, continha cinco episódios: 1. Um anjo anuncia a Maria sua morte próxima; 2. Todos os Apóstolos são milagrosamente transportados ao redor de seu leito; 3. A Virgem morre como todo ser humano; 4. No enterro, os judeus fazem protestos contra Ela, a “mãe do sedutor”; 5. Depois de sepultada, Maria ressuscita e é levada ao Paraíso.
É um pouco estranho que, antes da explosão dos apócrifos assuncionistas pelos anos 500, só há indícios vagos do destino final da Virgem. Por quê? Esta é a hipótese do Pe. B. Bagatti (que no início de 70 encontrara no Vale de Josafat, em Jerusalém, o túmulo em que Maria fora depositada): Nos primeiros séculos o túmulo de Maria estava sob os cuidados judeo-cristãos.
Por isso, a grande Igreja, da qual os judeo-cristãos se separaram, acabou perdendo o contato com a tradição do “trânsito” corporal de Maria.
2. 2 - Festas O Povo começou a celebrar a festa litúrgica da Assunção, fixada em 15 de agosto (seria o dies natalis de Maria, como para os santos), desde o séc. VI, na Basílica que a Imperatriz Eudóxia (séc. V) tinha mandado construir no lugar do “passamento” de Maria.
O Imperador Maurício levou esta festa para Bizâncio e a difundiu por todo o Império, de modo que se tornou, com o tempo, a maior festa mariana, promovendo assim a crença na Assunção. Já no Ocidente a festa começou no séc. VII em Roma, com uma procissão solene que começava com a famosa oração Veneranda:
Oração Veneranda “É para nós digno de veneração este dia em que a Santa Mãe de Deus sofreu a morte temporal. Não podia, entretanto, ficar submetida aos laços da morte, Aquela que gerou de si mesma e encarnou Vosso Filho, Senhor nosso”.
Esta festa, já chamada de “Assunção”, era celebrada com grande solenidade no corte de Carlos Magno, ao qual o Papa Adriano I tinha enviado, com outros documentos, aquela oração. Sublinhavase então fortemente o aspecto da Assunção corporal da Virgem.
2. 3 - Homilias Na festa da Assunção, os homiletas começaram a exaltar Maria, falando da sua Assunção também corporal, como Teokteno de Lívia (que viveu entre 550 e 650). Usavam-se aí argumentos de conveniência, na medida em que se aplicam à Virgem gloriosa diversas imagens bíblicas, como veremos.
2. 4 - Imagística O povo devoto e seus artistas começaram a representar a Virgem subindo ao céu, transportada por Cristo ou pelos Anjos; ou a Virgem reinando no céu, como a Mulher do Apocalipse (cap. 12).
3. Santos Padres Para o dogma da Assunção, o papel dos Santos Padres é pouco relevante. Foi o motivo pelo qual alguns célebres historiadores da Igreja, como I. Döllinger e B. Altaner, se opuseram ao dogma da Assunção. Mas o Pe. Feligrassi objetou dizendo que, se há consensus fidelium, isso é sinal (não prova) de que aquela verdade deve estar no depósito revelado.
Antes do séc. VIII, na Patrística, só há indícios fracos sobre a Assunção corporal, e isso só a partir do final do séc. IV, com Santo Efrém, Santo Epifânio e Timóteo de Jerusalém. Este, no Panarion (377) declara que as Escrituras nada dizem sobre o fim da Virgem e que, portanto, é preferível ficar numa atitude de silêncio e meditação. Os grandes Padres da “idade de ouro” (séc. IV e V) nada dizem sobre o tema.
Foi só com a Patrística tardia que emerge a doutrina da Assunção corporal. No Ocidente, o primeiro a defendê-la foi Gregório de Tours, no séc. VI, apoiando-se num apócrifo do “Trânsito B. M. V. ”. Depois vieram Santo Ildefonso no séc. VII e São Beda no séc. VIII.
Foi, porém, no Oriente e a partir do séc. VIII, que o tema da Assunção começou a ganhar um maior desenvolvimento, graças especialmente às homilias dos Padres como Germano de Constantinopla, André de Creta, João Damasceno e Teodoro Estudita.
No séc. IX, surge um “falso”, a carta Cogitis me (“Vós me obrigais”), atribuída a São Jerônimo (séc. IV), mas que era em verdade da mão do monge Pascásio de Radberto. Aí se levantam dúvidas sobre a autenticidade do apócrifo Transitus e, em particular sobre o aspecto corporal da glorificação da Virgem, sem, contudo, excluí-lo de todo.
Este escrito teve grande influência na Igreja latina. Bloqueou o desenvolvimento da crença na Assunção, também por ter sido usado no Breviário romano durante 700 anos, até a reforma de Pio V (1568).
Na metade do séc. XII, surgiu outro “falso”, o “Livro da Assunção de Beata Maria Virgem”, atribuído a Santo Agostinho. Este escrito, que pretendia responder ao anterior, muito contribuiu para o avanço da consciência assuncionista. Ele contava com o reconhecimento de Santo Alberto, de Santo Tomás, de São Boaventura e de outros doutores.
4. Bases bíblicas Nenhum texto da Bíblia fala da Assunção de modo direto e explícito (como de resto não fala da Theodokos, da Trindade e dos Sete Sacramentos). Há, sim, temas bíblicos, a partir dos quais a Comunidade eclesial chegou à descoberta (não invenção) do novo dogma. Portanto, o “último fundamento” do mesmo está na Bíblia, como afirma a proclamação dogmática (DH 3900).
Quais os temas bíblicos que sustentam o dogma da Assunção? Eis os principais: a) A Mulher vitoriosa sobre a Serpente: “Ela te esmagará” (Gn 3, 15). Maria vence, portanto, o pecado e também suas consequências: a morte e a sua corrupção. b) A Nova Eva, que não comeu do “fruto da morte” (Gn 3, 6 // Lc 1, 38) e, portanto, não podia morrer corporalmente.
c) A nova Arca: como a madeira da velha Arca devia ser incorruptível, por isso tinha que ser de acácia, mais ainda devia permanecer incorruptível o corpo imaculado e virginal de Maria, inteiramente consagrado a Cristo e à sua missão, não podendo, portanto, ser destruído pela morte (Ap 11, 19).
Segundo os Santos Padres, vale para a Assunta o que se diz da Arca: “Levantai-vos, Senhor, para virdes ao lugar do vosso repouso, vós e a Arca de vossa majestade” (Sl 131, 8). Ora, na Ascensão, Cristo se levantou; logo, Maria, sua arca, deve tê-lo seguido.
d) A Mãe perfeita, que foi honrada perfeitamente pelo Filho perfeito, como manda o IV mandamento. Como, podendo e devendo, não iria fazê-lo, senão elevandoa ao céu também com o corpo? e) A “Rainha-mãe” merecia ser colocada à direita do Filho, vitorioso da morte (Sl 44). Também a Rainha-esposa se semtas mp trono do Rei: “Quem é esta que sobe do deserto, apoiada em seu Amado? ” (Ct 8, 5).
f) A Mulher vestida de sol: ela é subtraída ao ataque do mortífero dragão (Ap 12, corresponde à primeira leitura da festa da Assunção). A Igreja viu na “Mulher” a figura da Virgem glorificada, “imagem escatológica da Igreja” (LG 68).
g) Maria, a primeira pessoa humana tocada plenamente pelo poder da Ressurreição de Cristo (Fl 3, 10). Ensina São Paulo: “Assim em Cristo todos reviverão. Cada qual, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; em seguida, os que forem de Cristo. . . ” (1 Co 15, 22 -23). Ora, a Virgem foi a criatura que mais “pertenceu” a Ele.
Ela será, portanto, a primeira a receber o efeito de sua ressurreição, ressuscitando logo após a morte. K. Rahner, em escrito póstumo, diz que Maria, para ser a Redimida primeira e integral, tinha que ressuscitar e tornarse, assim, o elo entre o “Primogênito dentre os mortos” e a humanidade à espera da Ressurreição.
h) A Santa Virgem como “singular e generosa companheira” de seu Filho (LG: generosa socia). Ora, se Ela participou fiel e plenamente do destino de Jesus na humilhação, como não haveria de participar também de sua glorificação? De fato, lê-se: “Se morrermos com Ele, com Ele viveremos. Se soubermos perseverar, com Ele reinaremos” (2 Tm 2, 11 -12; cf. Mt 19, 27 -30).
EXPLICAÇÃO TEOLÓGICA DO DOGMA DA ASSUNÇÃO
1. Como se nota pelos termos da definição dogmática, o dogma da Assunção tem caráter teocêntrico e especialmente cristocêntrico: antes de exaltar Maria, exalta a Santíssima Trindade. Além disso, ele tem uma finalidade soteriológico-pastoral: redunda em benefício de todo o Povo de Deus.
2. Como sugere também a definição dogmática, o dogma da Assunção ganha luz quando articulado, em termos da “conexão dos mistérios”, com os outros três dogmas (Maternidade, Virgindade, Imaculada Conceição), dos quais é como a coroação:
- Quanto à Maternidade divina: Maria esteve unida a Cristo por um laço íntimo e indissolúvel, e isso em todos os níveis: corporal (pela geração), psicológico (pelo afeto) e espiritual (pela comunhão em sua missão); como poderia, então, estar separada do Filho glorioso através da morte corporal?
- Quanto à Virgindade: já que o corpo de Maria, porque plasmado e ungido pelo Espírito da Vida, foi mantido sempre íntegro, como poderia ter sofrido a dissolução da morte? - Quanto à Imaculada conceição: por ser Toda-santa, Maria nada deveu ao pecado e, portanto, também à morte, que é o “salário do pecado” (Rm 6, 23).
3. Note que a definição infalível não diz que Maria foi elevada “ao céu”, como se diz de modo popular, mas precisamente que foi assunta à “glória celeste”, a fim de evitar todo entendimento espacializado do fato da Assunção. Ademais, o “foi assunta” (ou assumida ou arrebatada) é um passivo divino: foi Deus que elevou Maria à Glória do Reino.
4. Sobre a morte ou não de Maria. Ao definir o dogma da Assunção, Pio XII diz: “terminado o curso de sua vida terrena. . . ” Essa expressão deixa em aberto a questão se Maria morreu de verdade, como diz o mariólogo Balic’, ou só adormeceu (morte aparente), como defende o estudioso do dogma M. Jugie? É dominante hoje, mas não única, a tese morta-lista, de que a Virgem morreu mesmo.
5. Há teólogos hoje que repensam a Assunção no quadro da escatologia da ressurreição “na morte” e não “depois” da morte. Afirmam que a Assunta não seria um caso “exclusivo”, mas apenas “típico”. Sem falar na debilidade antropológica e bíblica desta visão teológica equivocada, ela esvazia o sentido da Assunção como privilégio mariano, tão enfatizado pela bula definitória (que repete três vezes o termo “privilégio”).
APLICAÇÕES DO DOGMA DA ASSUNÇÃO
1. A Virgem na glória é “sinal de esperança segura e de conforto para o povo de Deus peregrino” (LG 68). Isso porque Ela é a “imagem e o começo da Igreja consumada” (LG 68). Sem dúvida, a Ressurreição de Cristo é garantia bastante forte para a nossa, mas a Assunção de Maria reforça tal garantia e lhe acrescenta novos matizes, tipicamente femininos.
2. A Assunção confirma o sentido da vida como plenitude de felicidade em alma e corpo. O fiel se convence mais fortemente de que o destino do ser humano é a glória perene e total. Somos cidadãos dos céus. . . Jesus Cristo transformará nosso mísero corpo. . . semelhante ao seu corpo glorioso (Fl 3, 20 -21). A festa da Assunção é a festa do nosso destino.
Esse dogma se torna, ao lado e depois da Ressurreição de Cristo, terapia para o desespero humano diante do absurdo e do vazio provocados pela “morte de Deus”. Ademais, afirmando que Aquela que sofreu as “sete dores” é agora coroada com “doze estrelas”, a Assunção aparece também como reposta ao problema do sofrimento.
3. A Virgem gloriosa é um sinal eloquente do jeito de Deus agir (Lc 1, 52 b; cf. Lc 14. 11. 18). De fato, Maria é a Serva (LC 1, 38. 48) que foi elevada à Rainha. Isso infunde imensa esperança aos “humilhados e ofendidos” de nossa sociedade e desperta neles a coragem para lutar por sua dignidade.
4. A Assunta afirma o valor da vida humana, inclusive da vida corporal. Foi a lição que tirou Pio XII em 1950, no contexto social do pós-guerra. A Assunção é um protesto contra todos os ataques à vida humana, como a guerra e a fome. Mas amplamente ainda, a Assunção exalta toda forma de vida, como quer o movimento ecológico atual.
5. O dogma da Assunção proclama a dignidade do corpo humano, mormente dos corpos mais degradados, como dos pobres e das mulheres. A Assunção leva a respeitar o corpo humano, tratando-o inclusive com pureza e castidade. Às vésperas da declaração do dogma da Assunção, Pe. Ricardo Lombardi exclamava: “Jovens, levantai a cabeça e olhai! No céu há um corpo de mulher!”
6. Nossa Senhora da Glória aponta para a glorificação de todo o Cosmos. Puebla declara explicitamente: “No corpo glorioso de Maria começa a criação material a ter parte no corpo ressuscitado de Cristo”(n. 298). Isso também é sugerido pelos sublimes atavios cósmicos que embelezam a Mulher do Apocalipse 12: o sol por manto, a lua por estrado e as estrelas pro coroa!
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