Aldo Cordeiro Era uma cidade triste Sem graa

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Aldo Cordeiro

Aldo Cordeiro

Era uma cidade triste. Sem graça. Sem alma. Ou, se havia alma, estava de

Era uma cidade triste. Sem graça. Sem alma. Ou, se havia alma, estava de luto há tanto tempo que ninguém lembrava o motivo. Ninguém tocava qualquer instrumento, das cordas vocais dos habitantes não saía nenhuma vibração de alegria. O sol nascia, ia embora e a tristeza de todos era maior do que a nostalgia do seu adeus cotidiano. Tanto fazia ser noite de estrelas, lua grande, chuva fininha. Aldo Cordeiro

Há muito tempo uma onda de tristeza invadiu o lugar. A alegria foi embora

Há muito tempo uma onda de tristeza invadiu o lugar. A alegria foi embora no último carnaval e ninguém se lembrava de quando foi o último carnaval. Todos os dias eram quarta-feira de cinza. Nem paixão, nem finados, nem sorrisos, nem lágrimas. Apenas uma interminável quartafeira de cinzas. . . Pouco falavam uns com os outros. E até os seus nomes ficaram quase esquecidos. Aldo Cordeiro

Pois, naquele canto esquecido por qualquer insinuação de alegria apareceu, um dia, um velho

Pois, naquele canto esquecido por qualquer insinuação de alegria apareceu, um dia, um velho índio. Triste como tudo o mais, foi ficando. Andarilho sem terras, sem futuro, arrastava consigo o próprio corpo enrugado e uma surrada mala de vagas recordações. Melhor seria não lembrar de nada: de onde veio, de que tribo sentia saudades, de que danças, canções, brincadeiras. Aldo Cordeiro

Lembrar pra quê? Pelas estradas deixou tudo o que lhe trouxesse tristezas claras. Bastavam

Lembrar pra quê? Pelas estradas deixou tudo o que lhe trouxesse tristezas claras. Bastavam as rugas e o desejo de caminhar sem rumo, por onde o velho coração mandasse. Um índio sem orgulho, sem desejos, sem medos, sem heroísmo, sem alegria. Mas, se naquele lugar não havia nada, por que o índio iria querer ficar justamente ali? Aldo Cordeiro

E quem disse que o velho índio queria alguma coisa? Era um lugar perfeito

E quem disse que o velho índio queria alguma coisa? Era um lugar perfeito para ficar. Bastava isso. O lugar, as pessoas, os bichos sonolentos e vagarosos, o índio. Tudo se encaixava na mais perfeita apatia. Inclusive a terrível falta de cores. As cores do lugar haviam sumido junto com a alegria. Aldo Cordeiro

Por isso a cidade era toda em preto e branco. Sem que ninguém soubesse

Por isso a cidade era toda em preto e branco. Sem que ninguém soubesse quando começou, as cores havia partido há muito tempo. O tempo passou desde a chegada do índio velho. Sabemos lá de que tamanho foi o passado. Tamanho de tempo é do tamanho que a gente quer. De fazer nada, querer nada, pedir nada. . . Aldo Cordeiro

O índio foi ficando. Ficava sempre num canto dos arredores da cidade, a andar

O índio foi ficando. Ficava sempre num canto dos arredores da cidade, a andar entre ervas e plantas, comer qualquer coisa, dormir pelo chão, tendo as estrelas distantes como lençol. No entanto, sabe-se lá por que caprichos da Natureza, um dia o índio, que não se fixava no que os sentidos lhe traziam, sentiu o perfume de uma erva e parou entre o sentir e a vontade de continuar sentindo. Aldo Cordeiro

A memória ancestral de antigos pajés iluminou um canto da mente enrugada: era sálvia,

A memória ancestral de antigos pajés iluminou um canto da mente enrugada: era sálvia, a erva de limpeza, muito usada na sua tribo. Sem pensamentos, apenas tocando e cheirando folhas amassadas, colocando na boca quase sem dentes, foram voltando os esquecidos aromas: erva -doce, flores de camomila, capim cidreira, espinheira-santa, hortelã, folhas de eucalipto espalhadas pelo chão, boldo (que macio!). Aldo Cordeiro

O índio começou a juntar montinhos de folhas, flores e talinhos, separando-os por espécie

O índio começou a juntar montinhos de folhas, flores e talinhos, separando-os por espécie e colocando-os em fileira. Alguém viu aquela arrumação e, num inusitado rasgo de curiosidade adormecida, perguntou o que era. O velho respondeu, ao léu: são ervas. Aldo Cordeiro

E começou a dar-lhes nomes, numa linguagem quase incompreensível, falando de curas antigas. A

E começou a dar-lhes nomes, numa linguagem quase incompreensível, falando de curas antigas. A gente pode imaginar qualquer coisa para justificar as rupturas que povoam a vida dos seres humanos mas, naquele momento, eram apenas pedaços de memória de alguma voz perdida no tempo; memórias da mala do índio. Aldo Cordeiro

O curioso habitante levou uma das ervas para casa, fez um chá como falou

O curioso habitante levou uma das ervas para casa, fez um chá como falou o índio, e tomou. A vida tem formas estranhas para iluminar os caminhos. Não é que a dorzinha que maltratava a pessoinha sem graça amainou? Murmurou qualquer coisa pro vizinho que, sem maiores entusiasmos, foi ver o índio. . . Aldo Cordeiro

A camomila foi trazendo um sono mais tranquilo pro José, a espinheira-santa foi alegrando

A camomila foi trazendo um sono mais tranquilo pro José, a espinheira-santa foi alegrando o estômago da Maria de Lourdes, o eucalipto acalmou o chiado no peito da Chiquinha. E a sálvia? Que sensação boa era espalhar sálvia pela casa. Ervas e pessoas começavam uma nova história. Tinham nomes e desejos novamente. As cores foram voltando à cidade e as pessoas redescobriam a alegria perdida. Aldo Cordeiro

O Antonio passou a plantar algumas em seu quintal e falava com elas todos

O Antonio passou a plantar algumas em seu quintal e falava com elas todos os dias, agradecendo a nova cabeça sem dores. O índio, jogado pela vida naquele fim de mundo, sem atinar pra isso, era porta-voz do anjo da alegria, com seus montinhos de ervas e flores. Passou a ser querido e procurado por todos. Sempre útil. Sempre descobrindo novas curas. Aldo Cordeiro

A riqueza do índio continuava a ser a sua memória, agora mais viva, e

A riqueza do índio continuava a ser a sua memória, agora mais viva, e o sorriso resgatado dos moradores era o que ganhava com suas plantas. Um dia de sol fraquinho, a cidade iluminada e novamente colorida, encontrou o índio encostado a uma árvore, com um sorriso leve e despretensioso. Era a plenitude de uma felicidade profunda, de uma tribo nova, tão diferente da sua, mas tão alegre em seu retorno à Natureza. Aldo Cordeiro

Ao seu lado, uns amarradinhos de margaridas. Florzinhas sem pretensões. Leves sorrisos da Natureza.

Ao seu lado, uns amarradinhos de margaridas. Florzinhas sem pretensões. Leves sorrisos da Natureza. Algumas crianças se aproximaram dele e perguntaram para que serviam, pois estavam acostumadas a que tudo servia para alguma coisa. Aldo Cordeiro

O velho índio olhou os pequenos aprendizes e respondeu, sorrindo: Servem para as dores

O velho índio olhou os pequenos aprendizes e respondeu, sorrindo: Servem para as dores das casas de vocês. Arranjem pequenos jarrinhos e as enfeitem para que também voltem a sorrir. . . Aldo Cordeiro

CRÉDITOS Autor : Aldo Cordeiro Formatado por : Angelica Lepper www. angelicaslides. com. br

CRÉDITOS Autor : Aldo Cordeiro Formatado por : Angelica Lepper www. angelicaslides. com. br (no rodapé do site você pode ir acompanhando os 4 pps mais recentes) (agora também com localizador de slides) airlepper@gmail. com Imagens : Moon. Song Música : Romance - Zamphir Para entrar no meu grupo envie e-mail em branco para: Angelica. Slides-subscribe@yahoogrupos. com. br Para sair do grupo faça o mesmo clicando no link abaixo: Angelica. Slides-unsubscribe@yahoogrupos. com. br Aldo Cordeiro