Alberto Caeiro O guardador de rebanhos Poema I
Alberto Caeiro O guardador de rebanhos Poema I «Eu nunca guardei rebanhos»
2 Silva Porto, Guardando o rebanho (1893).
3 O guardador de rebanhos — Conjunto de 49 poemas — Publicado na íntegra pela primeira vez em 1946 Manuscrito do poema I d’O guardador de rebanhos.
4 Eu nunca guardei rebanhos, Mas a minha tristeza é sossego Mas é como se os guardasse. Porque é natural e justa Minha alma é como um pastor, E é o que deve estar na alma Conhece o vento e o sol Quando já pensa que existe E anda pela mão das Estações E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. A seguir e a olhar. Toda a paz da Natureza sem gente Com um ruído de chocalhos Vem sentar-se a meu lado. Para além da curva da estrada, Mas eu fico triste como um pôr de sol Os meus pensamentos são contentes. Para a nossa imaginação, Só tenho pena de saber que eles são contentes, Quando esfria no fundo da planície Porque, se o não soubesse, E se sente a noite entrada Em vez de serem contentes e tristes, Como uma borboleta pela janela. Seriam alegres e contentes.
5 Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais. Não tenho ambições nem desejos. Ser poeta não é uma ambição minha, É a minha maneira de estar sozinho. E se desejo às vezes, Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo), É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora. Van Gogh, Campo de trigo (1887).
6 Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro, Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias, Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende. Van Gogh, Campo de trigo verde com ciprestes, pormenor (1889).
7 Saúdo todos os que me lerem, Tirando-lhes o chapéu largo Quando me veem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. Saúdo-os e desejo-lhes sol E chuva, quando a chuva é precisa, E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predileta Onde se sentem, lendo os meus versos. E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural — Por exemplo, a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque, cansados de brincar, E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado Van Gogh, Criança com uma laranja (1890).
8 I. O eu como poeta-pastor «Eu nunca guardei rebanhos, Mas é como se os guardasse. » «Minha alma é como um pastor» Comparação que salienta a relação direta entre o eu e a Natureza A alma solitária do eu conhece a Natureza em profundidade Vive «de acordo» com ela — Conhece o vento e o sol — Vive de forma tranquila a passagem do tempo — Os seus sentimentos são descritos a partir de comparações com o mundo natural
9 II. Relação entre a noite, a tristeza e o pensamento «Mas eu fico triste como um pôr de sol […] / Quando esfria no fundo da planície» — Ausência de luz — Impossibilidade de ver — Perda do contacto profundo com a Natureza Noite Melancolia Reflexão Perturbação Impede a vivência de uma alegria plena «Porque, se o não soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. » Pensamento Angústia
10 III. Ideias contraditórias — sentir/pensar — O eu deseja que a sua relação com a Natureza seja mediada pelos sentidos, sobretudo pela visão — Os pensamentos deviam ser como «chocalhos» — algo objetivo e natural «Minha alma […] / Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar. » — A reflexão interfere na contemplação da Natureza — O sujeito poético «sabe» que os seus pensamentos «são contentes» — Entre a Natureza e o sujeito poético, existem as ideias «Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho»
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