A transformao permanente do tabu em totem Modernismo
"A transformação permanente do tabu em totem. " Modernismo 1ª fase – poesia (1922 – 1930)
O Modernismo representou um rompimento de artistas e intelectuais com a arte acadêmica e o tradicionalismo cultural no Brasil. O período de 1922 a 1930 é o mais radical do movimento modernista, justamente em consequência da necessidade de definições e do rompimento com todas as estruturas do passado. Daí o caráter anárquico dessa primeira fase e seu forte sentido destruidor, assim definido por Mário de Andrade:
"(. . . ) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e ideias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor. (. . . ) Mas esta destruição não apenas continha todos os germes da atualidade, como era uma convulsão profundíssima da realidade brasileira. O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. “
Fases do Modernismo brasileiro ü 1922 -1930 (1 a fase): “fase heroica”, marcada pelo radicalismo, pela releitura e ruptura com o passado brasileiro. Principais autores: Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira.
ü 1930 -1945 (2 a fase): consolidação das ideias deois da Semana de Arte Moderna; prosa regionalista e amadurecimento da poesia brasileira. Principais autores: Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Mário Quintana, Manoel de Barros, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, Murilo Mendes e Jorge de Lima.
ü 1945. . . (Pós-Modernismo): intensa pesquisa estética, fragmentação da narrativa e experimentação. Principais autores: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto.
Contexto Histórico No Brasil, 1922 é um ano cheio de fatos importantes: comemora-se o centenário da Independência, realiza-se a Semana de Arte Moderna, é criado o Partido Comunista, ocorre a primeira revolta tenentista. Aparece a revista Klaxon, Oswald de Andrade publica Os condenados, Mário de Andrade publica, com capa de Di Cavalcanti, Pauliceia Desvairada. O país moderniza-se: São Paulo já tem cerca de 600. 000 habitantes, o Rio tem o dobro. A imigração e a industrialização fazem crescer as cidades, mudam os antigos hábitos.
É nesses “anos fabulosos” que a arte brasileira começa a esquecer Paris ou ir a Paris só para descobrir o Brasil. À “poesia de exportação” de Oswald de Andrade corresponde a criação musical de Villa- Lobos, entrando pela Amazônia adentro e apanhando sons; a de Mário de Andrade viajando pelo interior e recolhendo modinhas, apesar de já estarmos com o charleston e o jazz. . .
A influência dos ismos europeus é “amorosamente roubada”, só como recurso para enxergar o Brasil sem o pincenez acadêmico e, nessa descoberta, produzir uma visão tão autenticamente crítica e nacional, que modificaria por completo a ótica de importação.
Principais características
Rompimento com o passadismo e o academicismo
Ruptura com a gramática normativa, especialmente com a sintaxe
Livre associação de ideias
Liberdade formal (versos livres e brancos)
Coloquialismo
Incorporação e valorização de temas prosaicos, ligados ao cotidiano, às coisas comuns
Postura crítica perante os valores sociais vigentes ditados, em especial, pela burguesia
Humor como recurso crítico
Ironia, poema-piada, paródia
Nacionalismo crítico
Fragmentação e flashes cinematográficos
Texto I O capoeira - Qué apanhá sordado? - O quê? - Qué apanhá? - Pernas e cabeças na calçada Oswald de Andrade
Síntese, poema-pílula
Texto II AMOR humor Oswald de Andrade
Busca de uma linguagem brasileira
Urbanismo
Revisão crítica de nosso passado histórico-cultural
Mário de Andrade (1893 -1945)
Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo em 9 de outubro de 1893 e faleceu nessa mesma cidade em 25 de fevereiro de 1945. Teve intensa atividade ligada à cultura durante toda a vida: foi diretor do Departamento Municipal de Cultura, em São Paulo; foi diretor do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal (então localizada no Rio de Janeiro); organizou o serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; lecionou história da música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Teve participação ativa na Semana de Arte Moderna e passou a exercer uma espécie de “magistério” modernista, correspondendo-se
com muitos poetas e escritores durante toda a sua vida. Além de poeta e ficcionista, Mário foi cronista, crítico literário e pesquisador de folclore, da música e das artes plásticas nacionais. Também trabalhou na redação da revista modernista Klaxon, veículo de divulgação das ideias e trabalhos dos novos escritores após a Semana de Arte Moderna. Entre suas principais obras, estão os livros de poemas Pauliceia desvairada, O losango cáqui; Amar, verbo intransitivo (romance), Macunaíma (rapsódia). A esses títulos se somam inúmeros outros, de crônicas, estudos sobre música e folclore brasileiros, história da arte, além de uma vastíssima correspondência e um livro de poemas “imaturos”: Há uma gota de sangue em cada poema.
ü Um dos organizadores do Modernismo e da SAM, foi o que apresentou projeto mais consistente de renovação. Começou escrevendo críticas de arte e poesia (ainda parnasiana) com o pseudônimo de Mário Sobral. Rompeu com o Parnasianismo e o passado com Pauliceia Desvairada e a Semana, da qual participou ativamente. ü Injetou em tudo que fez um senso de problemático brasileirismo, daí sua investida no folclore. De jeito simples, sua coloquialidade desarticulou o espírito nacional de uma montanha de preconceitos arcaicos. Lutou sempre por uma literatura brasileira e com temas brasileiros.
ü Seu primeiro romance é Amar, Verbo Intransitivo, que penetra na estrutura familiar da burguesia paulistana, sua moral e seus preconceitos. Aborda, ao mesmo tempo, os sonhos e a adaptação dos imigrantes na agitada Pauliceia.
ü Já em Macunaíma, Herói sem nenhum caráter, cria um anti-herói com um perfil indolente, brigão, covarde, sincero, mentiroso, trabalhador, preguiçoso, malandro - multifacetado. Inspirando -se no folclore indígena da Amazônia, mesclando a lendas e tradições das mais variadas regiões do Brasil, constrói-se um herói que encarna o homem latino-americano. Macunaíma é uma figura totalmente fora dos esquemas tradicionais da prosa de ficção, uma aglutinação de alguns possíveis tipos brasileiros.
Texto III Ode ao Burguês Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês! A digestão bem feita de São Paulo! O homem-curva! o homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas! os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros! que vivem dentro de muros sem pulos, e gemem sangues de alguns mil-réis fracos para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam os “Printemps” com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais Morte ao burguês-mensal! ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi! Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano! "- Ai, filha, que te darei pelos teus anos? - Um colar. . . - Conto e quinhentos!!! Mas nós morremos de fome!”
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma! Oh! purée de batatas morais! Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas! Ódio aos temperamentos regulares! Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados! Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos, sempiternamente as mesmices convencionais! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! Dois a dois! Primeira posição! Marcha! Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! Morte ao burguês de giolhos, cheirando religião e que não crê em Deus! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! Ódio fundamento, sem perdão! Fora! Fu! Fora o bom burguês!. . .
Gabriel, o Pensador Retrato de um Playboy
Gabriel, o Pensador Retrato de um Playboy 2
Oswald de Andrade (1890 -1953)
José Oswald de Sousa Andrade nasceu em São Paulo, em 11 de janeiro de 1890, e faleceu nessa mesma cidade, em 22 de outubro de 1954. Teve contato direto com as Vanguardas Europeias quando viajou a Paris, de onde voltou em 1912, “achando que a poesia brasileira podia ser mais avançada, adotando, inclusive, o verso livre”. Jornalista, ajudou a divulgar pela imprensa as novas ideias literárias. Conheceu Mário de Andrade em 1917. Em 1921, escreveu sobre ele um artigo chamado “Meu poeta futurista”, que causou escândalo e fez com que Mário perdesse vários alunos de suas aulas de música. Teve participação ativa na Semana de Arte Moderna.
Em 1931, arruinado economicamente, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, com o qual rompeu em 1945. Foi livre-docente de literatura na Faculdade de Filosofia da USP. A parte principal de sua obra é formada pelos romances Memórias sentimentais de João Miramar, Serafim Ponte Grande, entre outros; pelos livros de poesia Pau-Brasil, Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, Poesias reunidas. Escreveu peças teatrais e os manifestos Manifesto da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropofágico.
ü Foi poeta, romancista, ensaísta e teatrólogo. Figura de muito destaque no Modernismo Brasileiro, ele trouxe de sua viagem a Europa o Futurismo. Amigo de Mário de Andrade, era seu oposto: milionário, extrovertido, mulherengo (casou-se 5 vezes, as mais célebres sendo as duas primeiras esposas: Tarsila do Amaral e Patrícia "Pagu" Galvão).
ü Sua obra é marcada por irreverência, coloquialismo, nacionalismo, exercício de demolição e crítica. Incomodar os acomodados, estimular o leitor através de palavras de coragem eram constantes preocupações desse autor.
O furacão Oswald O velho clichê de se afirmar que “fulano foi um homem à frente de seu tempo” se aplica perfeitamente a Oswald de Andrade. Quem pode realmente enxergar as “idiossincrasias oswaldianas” há de saber que ele não apenas produziu literariamente como um vanguardista, ele viveu como um. Esteve acima do cárcere da moral burguesa e da opinião alheia. A inteligência agudíssima, a criatividade incomum e a sensibilidade singular tornaram -no um precursor legítimo da modernidade.
Poucos anos depois, paradoxalmente, seu tempo chegou: a contracultura, a revolução sexual colocariam em vigor a liberdade moral e artística pela qual ele lutou. Os escritos de Oswald foram sendo pouco a pouco reeditados e tornaram-se objetos de estudo em universidades. Pouco depois, seria estudado também nas escolas regulares de segundo grau. A partir de 1967, suas peças de teatro ganharam encenações. O movimento tropicalista, que sacudiu o país no final da década de 1960, lançando nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa, entre tantos, aconteceu confessadamente sob influência de
ü Trouxe ideias do Futurismo para o Brasil; ü Idealizador dos principais manifestos modernistas; ü Foi militante político. Características de sua obra ü Nacionalismo que busca as origens; ü Crítica da realidade brasileira; ü A paródia como uma forma de repensar a literatura; ü Valorização do falar cotidiano; ü Análise crítica da sociedade burguesa capitalista; ü Inovação da poesia no aspecto formal; ü Urbanismo; ü Irreverência, poema-pílula, humor;
Texto V pronominais Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro
Texto VI erro de português Quando o português chegou Debaixo de uma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português
Texto VII brasil O Zé Pereira chegou de caravela E preguntou pro guarani de mata virgem -Sois cristão? -Não, Sou bravo, sou forte sou filho da morte Teterê tetê Quizá Quecê! Lá longe a onça resmungava Uu! Ua! uu! O negro zonzo saído da fornalha Tomou a palavra e respondeu - Sim pela graça de Deus Canhem Babá Cum! E fizeram o carnaval
Texto VIII as quatro gares infância O camisolão O jarro O passarinho O oceano A visita na casa que a gente sentava no sofá
adolescência Aquele amor nem me fale maturidade O Sr. e a Sr. Amadeu Participam a VExa. O feliz nascimento De sua filha Gilberta velhice O netinho jogou os óculos Na latrina
Texto IX Há poesia na flor na dor no beija-flor no elevador.
Manuel Bandeira (1886 / 1968)
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu no Recife, em 19 de abril de 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, em 13 de outubro de 1968. Começou a cursar engenharia em São Paulo, mas a tuberculose o obrigou a abandonar o curso, levando-o a várias estações de tratamento: esteve até mesmo um ano da Suíça. Apesar de não estar pessoalmente presente às noitadas literárias da Semana de Arte Moderna, participou do evento, pois seu poema “Os sapos”, sátira dos que insistiam em ainda prender-se ao Parnasianismo, foi declamado por Ronald de Carvalho.
A partir de 1935, com a melhora de seu estado de saúde, passou a trabalhar como inspetor de ensino e, posteriormente, tornou-se professor de literatura do Colégio Pedro II e professor de literaturas hispano-americanas na Universidade do Brasil. A obra poética de Manuel Bandeira começou com a publicação de Cinza das horas (1917), seguido de Carnaval (1919). Em 1924, publicou O ritmo dissoluto; em 1930, Libertinagem, suas duas obras mais diretamente ligadas às estéticas da geração de 22. (. . . )
Em 1966 foi lançada Estrela da vida inteira, reunindo toda a produção poética do autor até então. Além de poeta, Bandeira foi cronista, historiador e crítico literário, tradutor e organizador de edições de obras de outros poetas (Antero de Quental e Gonçalves Dias) e de antologias poéticas. Também escreveu Itinerário de Pasárgada, uma espécie de autobiografia de sua atividade poética.
As fatalidades da vida deixam em sua obra cicatrizes profundas (morte do pai, da mãe e da irmã, convivência e sofrimento com sua própria doença). Buscou na própria vida inspiração para os seus grandes temas: de uma lado a família, a morte, a infância no Recife, o rio Capibaribe; de outro, a constante observação da rua por onde transitam os mendigos, as prostitutas, os meninos carvoeiros, os carregadores das feiras, falando o português gostoso do Brasil (humor, ceticismo, ironia, tristeza e alegria dos homens, idealização de um mundo melhor).
Texto X Porquinho-da-Índia Quando eu tinha seis anos Ganhei um porquinho-da-índia. Que dor de coração me dava Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! Levava ele pra sala Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas. . . — O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.
Texto XI Poema do beco Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? - O que eu vejo é o beco
Texto XII Poética Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente /protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao quer que seja fora de si mesmo De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do /amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Texto XIII Poema tirado de uma notícia de jornal João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e /morreu afogado.
Texto XIV Evocação do Recife Não a Veneza americana Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais Não o Recife dos Mascates Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois - Recife das revoluções libertárias Mas o Recife sem história nem literatura Recife sem mais nada Recife da minha infância A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras mexericos namoros risadas A gente brincava no meio da rua Os meninos gritavam: Coelho sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam: Roseira dá-me uma rosa Craveiro dá-me um botão (Dessas rosas muita rosa Terá morrido em botão. . . ) De repente nos longos da noite um sino Uma pessoa grande dizia: Fogo em Santo Antônio! Outra contrariava: São José! Totônio Rodrigues achava sempre que era são José. Os homens punham o chapéu saíam fumando E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
Rua da União. . . Como eram lindos os montes das ruas da minha infância Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal) Atrás de casa ficava a Rua da Saudade. . . onde se ia fumar escondido Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora. . . onde se ia pescar escondido Capiberibe — Capibaribe Lá longe o sertãozinho de Caxangá Banheiros de palha Um dia eu vi uma moça nuinha no banho Fiquei parado o coração batendo Ela se riu Foi o meu primeiro alumbramento Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas Cavalhadas E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos Capiberibe Capibaribe Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas Com o xale vistoso de pano da Costa E o vendedor de roletes de cana O de amendoim que se chamava midubim e não era torrado era cozido Me lembro de todos os pregões: Ovos frescos e baratos Dez ovos por uma pataca Foi há muito tempo. . .
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem Terras que não sabia onde ficavam Recife. . . Rua da União. . . A casa de meu avô. . . Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade Recife. . . Meu avô morto. Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.
Texto XV Vou-me Embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada.
Texto XV Camelôs Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão: O que vende balõeszinhos de cor O macaquinho que trepa no coqueiro O cachorrinho que bate com o rabo Os homenzinhos que jogam boxe A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma.
Alegria das calçadas Uns falam pelos cotovelos: - "O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho, vai buscar um pedaço de banana para eu acender o charuto. Naturalmente o menino pensará: Papai está malu. . . " Outros, coitados, têm a língua atada. Todos porém sabem mexer nos cordéis com o tino ingênuo de demiurgos de inutilidades. E ensinam no tumulto das ruas os mitos heroicos da meninice. . . E dão aos homens que passam preocupados ou tristes uma lição de infância.
Texto XVI Profundamente Quando ontem adormeci Na noite de São João Havia alegria e rumor Estrondos de bombas luzes de Bengala Vozes, cantigas e risos Ao pé das fogueiras acesas. No meio da noite despertei Não ouvi mais vozes nem risos Apenas balões Passavam, errantes
Silenciosamente Apenas de vez em quando O ruído de um bonde Cortava o silêncio Como um túnel. Onde estavam os que há pouco Dançavam Cantavam E riam Ao pé das fogueiras acesas? - Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo Profundamente.
Quando eu tinha seis anos Não pude ver o fim da festa de São João Porque adormeci Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó Meu avô Totônio Rodrigues Tomásia Rosa Onde estão todos eles? - Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo Profundamente.
Texto XVII Pneumotórax Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse. Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três. . . trinta e três. . . - Respire. - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango /argentino.
Texto XVIII Irene no céu Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor. Imagino Irene entrando no céu: - Licença, meu branco! E São Pedro bonachão: - Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Os Tribalistas Tribalismo
Texto XIX Tribalismo Tríade, trinômio, trindade, trímero, triângulo, trio Trinca, três, terno, triplo, tríplice, tripé, tribo Os tribalistas já não querem ter razão Não querem ter certeza Não querem ter juízo nem religião Os tribalistas já não entram em questão Não entram em doutrina, em fofoca ou discussão Chegou o tribalismo no pilar da construção
Pé em Deus e Fé na Taba Um dia já foi chimpanzé Agora eu ando só com o pé Dois homens e uma mulher Arnaldo, Carlinhos e Zé Os tribalistas saudosistas do futuro Abusam do colírio e dos óculos escuros São turistas assim como você e seu vizinho Dentro da placenta do planeta azulzinho
Pé em Deus e Fé na Taba Um dia já foi chimpanzé Agora eu ando só com o pé Dois homens e uma mulher Arnaldo, Carlinhos e Zé Um dia já foi chimpanzé Agora eu ando só com o pé
Pé em Deus e Fé na Taba O tribalismo é um anti-movimento Que vai se desintegrar no próximo momento O tribalismo pode ser e deve ser o que você quiser Não tem que fazer nada basta ser o que se é Chegou o tribalismo, mão no teto e chão no pé Os Tribalistas
- Slides: 95